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Estas mãos não são minhas. Olho para elas, vezes sem conta. Viro-as, examino-as ao pormenor. Não são minhas. Estão macilentas e têm dedos compridos e esguios com unhas a combinar. Veem-se todas as veias e estão manchadas, como se tivessem algum tipo de doença cutânea impossível de tratar. E parece que as vejo desfocadas, como se estivesse sob o efeito de drogas. Se calhar até estou, sem saber. Nunca sei. Agora já não. Já quis saber, é verdade, mas as pessoas mudam e, pelos vistos, eu não sou exceção.

Tento abstrair-me desta sensação de que não pertenço ao meu próprio corpo, por isso puxo o autoclismo, pego na mochila e no casaco e saio do cubículo para lavar as mãos. As mãos, outra vez. Tento lavá-las bem, para ver se muda alguma coisa, mas, ao secá-las, vejo que continuam na mesma. Não podem mesmo ser minhas! Tenho de deixar de pensar nisto.

Dou um encontrão a alguém que entra na casa de banho e faço-lhe má cara. Nem sequer olha para mim e eu sigo em frente. Já não quero saber. Viro a esquina a pensar se ainda vale a pena ir ao refeitório, ou se compro simplesmente uma sandes no bar. Não ando com muita fome e quero poupar. Quero sair daquela casa e o que ganho a trabalhar no El Corte Inglés não chega sequer para arrendar um apartamento decente na Amadora, quanto mais em Lisboa. Está tudo cada vez mais caro e eu estou cada vez mais no fundo da cadeia alimentar. Quase já me sinto a ser devorada. Quase.

A porra da sandes de atum é mesmo boa! E ainda consegui comprar uma Cola Zero para acompanhar. O preço do açúcar também é tramado e as minhas ancas e coxas agradecem. Não que a Coca-Cola faça lá muito bem no geral, mas pode ser que me limpe os intestinos (e a consciência também por arrastão). Dizem que é boa para limpar os canos e pode ser que assim me passe esta sensação de mal-estar constante. Olhar para aquelas mãos que pegam na minha sandes faz-me ficar enjoada e deito o resto no lixo. Não devia gastar assim o meu dinheiro, mas não consigo mesmo olhar mais para aquilo. Mete-me nojo que aquelas mãos lhe tenham tocado antes de ir para a minha boca.

Já não vou à última aula. Não estou com pachorra e preciso de arejar as ideias. «Tu, que já me saíste cá uma cabeça de vento!», imagino a mãe a dizer. Como dizia antigamente. Agora mal trocamos monossílabos. Provavelmente por minha culpa. Como sempre.

Vi o meu bafo fazer espirais de vapor no ar frio quando suspirei para a noite. Mas que horas seriam? Nem sabia onde estava. Parecia que andava sempre a perder bocados da realidade ultimamente. Perdia-me cada vez mais nas minhas fantasias e discussões mentais. Preferia imaginar a viver. Passava bem sem isso. Ainda ali estava de pé, mas tanto fazia estar assim ou estendida ao comprido no chão. Ia dar ao mesmo.

Ana Rita Sintra

(Os Invulgares)

Comments(2)

  1. Coisas da vida. Bem conseguido. Gostei.

  2. […] de múltiplos significados. Já podem ler dois textos da minha autoria: Guinada de Saudades e Estatelada. Como sempre, basta clicar nos títulos para seguir diretamente para a página com o texto. Gostava […]

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