Lendo O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, na edição da D. Quixote, encontrei a seguinte declaração, feita pelo narrador:
Quando fala com uma pessoa nunca olha para ela de frente, o que é um traço comum aos homossexuais.
Vem esta declaração na sequência da apresentação da personagem Balthasar, logo no início da parte II, do livro «Justine», momento em que o narrador, que é também personagem, já se deu a conhecer suficientemente para que qualquer leitor estranhe tal declaração.
Dizer que há um traço comum aos homossexuais é o mesmo que dizer que todos os homossexuais têm em comum certa caraterística. Segundo a tradução da D. Quixote, portanto, Lawrence Durrell encarrega o seu narrador de dizer que todos os homossexuais se caraterizam por não olharem de frente para as pessoas com que falam. Ora, isto é uma afirmação homofóbica, que até poderia fazer sentido, se Lawrence Durrell tivesse decidido criar a personagem de um homofóbico e tivesse decidido entregar-lhe a narração de O Quarteto de Alexandria. Mas não é o caso, e estranhei, portanto, a declaração.
«Com a pulga atrás da orelha», fiquei com vontade de consultar a versão inglesa do romance para confirmar a minha suspeita de que, entre Lawrence Durrell e a edição que eu estava a ler, alguma coisa tinha corrido mal.
Não tenho em casa a versão inglesa de O Quarteto de Alexandria, e a curiosidade consegue deixar-me impaciente. Por isso, lembrei-me de recorrer à aplicação que me tem em contacto permanente com os meus alunos de Crítica Textual, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, para lhes perguntar se algum teria a versão inglesa de O Quarteto de Alexandria. Para minha grande sorte, o Diogo Montenegro respondeu-me logo dizendo que tinha uma edição digital, sim, e que poderia carregá-la imediatamente na aplicação. Em segundos, tinha no meu telemóvel a edição inglesa de O Quarteto de Alexandria. Expliquei ao Diogo a minha suspeita, e depressa encontrámos o lugar correspondente à tradução que acima citei:
In speaking to you he never looks at you directly – a trait which I have noticed in many homosexuals.
Pois… Um traço comum aos homossexuais significa um traço partilhado por todos os homossexuais; mas um traço comum entre os homossexuais significa um traço partilhado por muitos homossexuais; e «um traço que alguém encontrou em muitos homossexuais» introduz limitações circunstanciais importantes à declaração, perdidas na tradução.
Espreitei a ficha técnica do livro. A tradução está bem identificada, mas as funções de controlo suscitam dúvidas. Diz-se na ficha técnica que a «Edição» ficou a cargo de Cecília Andrade, que a «Revisão de tradução» se deve a «Publicações Dom Quixote», e a «Revisão», a Clara Joana Vitorino.
Presumindo que todas estas pessoas leram a tradução de Daniel Gonçalves, comparando-a ou não com a versão inglesa do romance, Lawrence Durrell não deveria ter sido assim traído, nesta edição de O Quarteto de Alexandria.
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Jacques Boutard
Sendo francês, nao tenho razão alguma para ter a tradução portuguesa do livro de Lawrence Durrell. Mas sim tenho a tradução francesa de Roger Giroux (1959) que diz : “Quand il vous parle, il ne vous regarde jamais en face, trait que j’ai souvent remarqué chez les homosexuels.” Esta tradução parece muito mais fiel à versão original da tradução portuguesa (many > souvent).
Ângela Correia
Neste passo, a tradução francesa parece-me melhor, de facto. Mas poderá haver outros passos em que assim não seja. Só fazendo uma comparação exaustiva poderíamos ter a certeza. Muito obrigada.
Margarida
O papel dos tradutores sempre me pareceu tão importante quanto difícil. E a dificuldade maior será quando tradutor e autor já não podem dialogar. Michel Laban tradutor para francês de autores angolanos entre eles Luandino Vieira, dizia que deveria haver prémios para traduções/tradutores. Tenho ideia que atualmente já foi instituído esse prémio mas faltam-me dados mais precisos.
Por coincidência Iniciei a leitura do livro que refere há poucos dias.
Ângela Correia
Premiar tradutores parece-me muito importante. Assim como a existência de uma crítica editorial construtiva e independente, que estimule a exigência de boas edições. Muito obrigada, Margarida.
Jacques Boutard
Jà existem tais prémios nos Estados Unidos (Best Translated Book Awards).
Carlos Arnaut
Cara Margarida,
Que bem observado! É sem dúvida fundamental que o tradutor para além de dominar a língua consiga ainda interpretar a intenção subjectiva do autor na redacção da frase.
Não li o livro, mas vou ler.
Cumprimentos
Margarida
Boa leitura. Eu estou a gostar muito.
Jacques Boutard
Tais prémios jà existem nos Estados Unidos (Best Translated Book Awards).
Maria Gamito
A homofobia parece-me que começa logo no autor, apesar de, sim, a tradução se permitir ser livre. É interessante, uma página onde se pensa no que se diz ou escreve.
Armando Manuel Silva Teixeira
Tenho intenção de iniciar a leitura deste livro. Alguém me poderá indicar qual a melhor tradução, para o nosso Português? E qual a Editora?
Obrigado