Com a publicação de Por Força!, de Maximiliano de Azevedo, chega pela segunda vez à Bibliotrónica Portuguesa uma reedição preparada a partir de um dos livros da biblioteca de Osório Mateus. O carimbo descrito pelos autores da reedição, na nota editorial, comprova-o.
Esta biblioteca, atualmente disponível na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, partilhou os dias de Osório Mateus, que a construiu em torno da especialização no teatro. Conheci-a na casa particular de Osório Mateus, que frequentei para trabalhar na conhecida coleção Vicente, num tempo em que o correio eletrónico era uma miragem. Entre vários jovens licenciados, convidados a participar nos trabalhos de edição da coleção, bati-lhe à porta muitas vezes para receber e entregar umas disquetes grandes e flexíveis, então o último grito da modernidade, ou para entrar e ficar a fazer revisões. Não necessariamente revisões do que eu tinha escrito, porque o Osório Mateus tinha criado um sistema de revisão circular, segundo o qual todos (independentemente de idade, experiência ou conhecimento) reviam os trabalhos de todos (independentemente de idade, experiência ou conhecimento) e cada um aceitava das revisões o que achasse bem aceitar. Todos (tanto autores quanto revisores) concentrados no que o Osório Mateus tanto queria encontrar: a memória do ato teatral no texto que dele nos ficou.
Para as muitas pessoas que por ali passavam trocando disquetes moles e grandes, trabalhando e conversando, o Osório Mateus tinha um caixote com livros de que queria desfazer-se, e convidava-nos a levar os que quiséssemos. Aquilo era um extraordinário banquete, para nós que estávamos, plenos de entusiasmo, no início do caminho da recolha de livros, e não sabíamos ainda que ele nos levaria à angústia.
Durante estas permanências, o Osório Mateus conduzia-me a uma divisão quadrada onde os livros de teatro revestiam as paredes, incluindo o meio metro entre o topo da porta e o teto. Era ali que eu ficava, sozinha com a biblioteca, entregue à revisão de provas, horas a fio, até que o Osório Mateus entrava para, procurando uma fórmula delicada de o dizer, me lembrar de que era passada a hora de as visitas se retirarem.
Eu já então sabia que o Osório Mateus pertencia ao grupo dos capazes de ver para além do óbvio, mas, nesta mesma sala, tivemos sobre o futuro duas breves conversas que o confirmaram. Uma delas foi sobre a Bibliotrónica Portuguesa. E eis a razão por que a chegada de reedições de livros com o carimbo da biblioteca de Osório Mateus me fazem sempre sorrir, à beira do tempo organizado em círculos.
Quando já se encontrava muito doente, atravessei uma última vez a praceta em frente ao prédio onde morava, para o visitar. Abriu-me a porta, todo ele branco, azul e frágil. Disse-me com solenidade: «O Osório Mateus hoje não pode atendê-la.» Respondi-lhe com a mesma solenidade: «Entregue-lhe então este lírio, por favor, e diga-lhe que vim visitá-lo.». «Com certeza, assim farei.».
Voltámos a ver-nos através dos carimbos que deixou nos livros da biblioteca Osório Mateus.