Logo Loading

Nos últimos dias de 2017, a Bibliotrónica Portuguesa publicou oito novas reedições, proporcionando leitura histórica, em acesso aberto e gratuito, aos seus leitores. Os novos títulos são os que se seguem.

Os Lázaros, de Abel Botelho, conhecido autor do naturalismo português, foi publicado pela primeira vez em 1904, e narra a decadência da família do conde de Fiães.

Instinctivamente regosijado, o marido de Claudina tinha agora o passo leve e astuto. Armando sorria, no seu intimo envaidecido. Só o conde, ligeiramente pallido, emmudecêra… No momento exacto em que lle ia, grotescamente, chamar as attenções de Armando para o magnificente adereço da mulher, rasgou-lhe o espirito, como um relampago de ignominia, uma suspeita terrivel! Os commentarios, as meias revelações, os expressivos gestos, as esfusiadas de troça que, durante toda a noite, e agora mais do que nunca, o assetteavam, eram bem significativos. Constituiam talvêz um aviso salutar. Queriam vêr que era d’ali que vinha o perigo?… O mysterioso D. Juan d’aquella inolvidavel noite fôra talvêz Armando! Pois não era o que todos implacavelmente lhe estavam dando a entender?… E elle tão pulha, elle tão parvo, que ainda em cima, por supremo escarneo, ia ali assim afagando e cumulando de attenções o algoz da sua reputação, o executor da sua vergonha!

Quando este clarão de tardia dignidade lhes cruzou a consciencia, o conde ia perdendo os sentidos. A razão turvou-se-lhe, os olhos metallisaram-se-lhe. Voltou-se para o companheiro n’um movimento brusco, que a debilidade impulsiva dos seus nervos exhaustos tornaria aggressivo, se não fôsse a intervenção, a tempo, de Themudo, o qual, trazendo bem presente a recommendação da mulher, cingia Armando com effusão, n’um affectuoso abraço.

Coisas D’Agora, de Maria Amália Vaz de Carvalho, escritora, foi publicado pela primeira vez em 1913. A Biblotrónica Portuguesa deve um sentido agradecimento a Marília Andrade, que assegurou a revisão deste livro.

Hontem, ao ver nos jornaes o primeiro telegramma annunciando o passamento d’aquella que foi Princeza da illustre casa de Saboya e Rainha do triste Reino de Portugal, a minha alma evolou tristemente, saudosamente, para um passado proximo, que não sei por quê, me parece projectado além do mundo, além da propria vida.

Foi hontem? foi ha seculos? Não sei. Mas eu vejo-o claro e distincto como ás vezes em sonhos a gente vê traços largos da vida que já foi.

Como a Rainha Maria Pia se conjuga estreitamente com as lembranças e saudades do meu passado, é facil adivinhal-o desde que se saiba que ella a grande Italiana, e eu a obscura portugueza, tinhamos exactamente a mesma idade!

Tinhamos ambas 15 annos, quando em manhã radiosa de Outubro, cinco de Outubro, n’este outomno tão doce de Portugal, a esquadra portugueza e a italiana que a acompanhava, fazendo-lhe cortejo, fundearam em frente de Belem, trazendo a bordo de uma das suas náos aquella creança loura, intelligente, extranha, altiva e meiga a um tempo, cujo destino seria, esgotar, sob este calmo céo, que para ella se fez tão inclemente e duro, todas as dôres que parece só terem refugio nas velhas tragedias de Eschylo, o bárbaro imortal!

Que encantamento infantil com que eu segui, da velha casa brazonada e em ruinas, que me servio de fundo pittoresco e triste á mocidade, essa historia que me parecia de fadas, de uma princeza pequenina, que vinha de longe, da Italia mater, da Italia que era então, pelo valor e pelo martyrio, a nação adorada entre as nações, sentar-se no solio portuguez que de tantas glorias provinha e sobre tantas glorias se erguia.

Não estava ainda longe, não estava ainda esquecida a epopeia das nossas lutas liberaes.

A Rir e a Sério, de Alberto Bramão, jornalista e escritor. Publicado pela primeira vez em 1896, dá a conhecer, com sentido de humor, figuras da época.

Ia comnosco um alienista allemão, especie de armazem de sabedoria, conhecido com celebridade em todo o mundo das sciencias medicas.

Era um homem baixo, com duas lentes nos olhos ophthalmicos, o cabello escorrido sobre a testa n’um renque pastoso, e um par de suissas, em fórma de linguado, caindo ao longo das maxillas vastas.

Contavam-se historias acerca dos seus commettimentos clinicos, e a sua incontestada sapiencia tinha formado em torno do seu nome uma atmosphera de lenda e de veneração.

Bismarck, o grande agente da unidade germanica, consultava-o a meúdo ácerca do seu rheumatismo e da sua patria, e nunca os seus diagnosticos falharam.

Bismarck, um dia dissera-lhe, apertando-lhe a mão com a franqueza que caracterisa o grande estadista:

– Você é o Hypocrates das gerações modernas!

Esta palavra emproara de orgulho a cabeça chata do venerando sabio, e levara-o a julgar-se o maior de todos os homens. Consequentemente, começou a sentir desdem por toda esta raça de charlatães e escolares, todo este formigueiro de imbecís que por ahi faziam reputação na litteratura, nas artes e nas sciencias, e a quem elle chamava, na sua phrase predilecta: – A vergonha da natureza. Ao proprio Bismarck chamava elle o chanceller de ferrugem; e explicava que, sendo o principe desde longa data conhecido por chanceller de ferro, certo era que durante tanto tempo este metal não podia deixar de estar oxydado, e não admittia que ninguem o contrariasse.

– Disse e está dito!

Era a palavra com que o grande alienista terminava as questões, palavra a que todos emmudeciam, já pela sua reputação de auctoridade scientifica, já pela arrogante decisão da sua cara redonda e terrivel.

Entre a tripulação do Northon era elle conhecido, salvo o respeito devido ao seu grande saber, pela alcunha solemne de Cara Fatal.

Está claro que nunca lh’o dissemos, e que quando dirigiamos a palavra a tão sapiente doutor, era sempre – mr. Heine, isto, mr. Heine, aquillo

A Evangelista, de Alphonse Daudet, o conhecido autor de Cartas do Meu Moinho, numa tradução assinada por José Sousa, foi publicado, pela primeira vez em Lisboa, em 1907. A narrativa tem como pano de fundo os tempos de rápida propagação do protestantismo, no séc. XIX, em França.

Na Avenida dos Ternos, ao lado de uma estação de omnibus, M.me Ebsen e a sua filha entravam, á noite, n’um páteo de uma rua de operarios; era a tal casa illuminada vagamente por uma frouxa luz avermelhada, de pharol de policia por detraz de um grande vidro, onde se liam estas palavras: Salla Evangelica. A’ entrada, entre os batentes de uma porta dupla de baêta verde, um homem distribuia uns livrinhos, tratados, canticos, aos quaes juntava o programma da reunião d’aquella noite, que já começára quando ellas chegaram.

O local era vasto e alto, uma antiga oficina transformada recentemente em uma sala de orações, e conservando por baixo da pintura das paredes, onde cahia, a espaços, a luz crua de um bico de gaz, o vestigio negro das chaminés das forjas os buracos dos cabides das ferramentas. La dentro, n’uns quarenta bancos, de que apenas metade estavam occupados, havia o publico mais misturado que se póde imaginar: algumas velhas bem trajadas, algumas estrangeiras, depois os caixeiros da casa Autheman, curiosos, vadios do bairro, achando mais commodo ir dormitar n’um banco d’aquelles do que n’um café, blusas d’operarios, lenços de cabeça de varredouras de officio, onde em Paris contam mais lutheranos, cinco ou seis militares, de cabello á escovinha e orelhas afogueadas e por ultimo os maltrapilhos, pagos a tanto por hora, alguns velhos frequentadores, pagos a tanto por hora, alguns velhos frequentadores das portas d’egrejas, caras avinhadas côr de terra, embrutecidas, e entre ellas uma mendiga, no meio de um enxame de creanças, cobertas de farrapos e a tasquinhar pão secco.

Sobre um estrado, onde a elevada estatura de Anna de Beuil marcava, com uma batuta de madeira preta, o compasso de um cantico, campeava M.me Autheman, n’uma grande poltrona, correcta e fria como de costume, á frente de uma dupla fileira de romeiras evangelicas, de blusas de lustrina das escolas de Porto-Salvador, com a mancha branca e adiante dos pequenos canticos sobre toda esta escuridão de trajes Elina sentada ao fundo, perto de sua mãe, abriu machinalmente o programma impresso com luxo e onde se lia:

REUNIÃO DAS DAMAS EVANGELICAS

Flores do Frio, de Cláudio Basto, médico, etnógrafo, filólogo e professor, é um exemplo precoce de prosa poética, publicada, pela primeira vez, em 1922.

Eu quero exteriorizações ideais de afectos, de paixões, de loucuras de amor. Que me importam os homens? Só quero dêles os desejos, os sonhos, os carinhos, que se evaporam dos seus lábios, dos seus olhos, dos seus gestos, não me interessando a quem pertençam, porque nada me interessa a fealdade ou gentileza dos corpos. Almejo um incêndio de prazer, quero calcinar-me em volúpia, quero vibrar, enrolar-me, retesar-me, convulsar-me, estorcer-me, como um vime zimbrado por um ciclone, —  ciclone de ânsia, de gôzo, de epilepsias lúbricas; quero afogar-me voluptuàriamente num furioso mar de sensações, vibratilidades, arfares, suspiros, deliquios, que se evolem, estonteantes, dos homens, — mas sem os ver, sem pensar em nenhum, como se me afogasse na côr e na veludeza e no perfume, insulados da flor… Eu separo da carne a forma, a tepidez, o movimento, o contacto, o espasmo — e só essa imaterialização eu amo»…

Azulejos, do Conde de Arnoso, membro do grupo «Os Vencidos da Vida», começa com um prefácio assinado por Eça de Queirós.

 

Depois, n’uma manhã de julho, tomou-se a Bastilha. Tudo se revolveu: e mil novidades violentas surgiram, alterando a configuração moral da Terra. Veio a Democracia: fez-se a illuminação a gaz: assomou a instrucção gratuita e obrigatoria: installaram-se as machinas Marinoni que imprimem cem mil journaes por hora: vieram os Clubs, o Romantismo, a Politica, a Liberdade, e a Phototypia. Tudo se começou a fazer por meio de vapor e de rodas dentadas – e para as grandes massas. Essa cousa tão maravilhosa, d’um mechanismo tão delicado, chamada o individuo desappareceu; e começaram a mover-se as multidões, governadas por um instincto, por um interesse ou por um enthusiamo. Foi então que se sumiu o Leitor, o antigo Leitor discipulo e confidente, sentado longe dos ruidos incultos sob o claro busto de Minerva, o Leitor amigo, com quem se conversava deliciosamente em longos, loquazes Proemios: e em logar d’elle o homem de lettras vio deante de si a turba que se chama o Publico, que lê alto e á pressa no rumor das ruas.

Eça de Queirós

 

Nasci do linho de Nouvion, fiado n’uma roca por uma velha, que, apezar de cega, conseguia que a linha tenuissima, como os fios da teia d’uma aranha, sem um nó, crescesse na massaroca do seu fuso favorito, ininterruptamente, até ao acabar da estriga.

Depois, por ordem de Colbert, levaram-me para Alençon. Ali, uma rapariga bem nova e bem infeliz, porque o noivo tinha partido para a conquista de Flandres, creou-me, orvalhando o pergaminho sobre que eu ia crescendo com as lagrimas da sua saudade. Como me lembro d’ella! Magra, com o peito mettido para dentro, á força de estar curvada sobre mim; o rosto oval, com a expressão melancholica, de bocca sempre entreaberta para deixar passar os suspiros; as meninas dos olhos negras, humedecidas, como se fossem recortadas na penna luzidia da aza d’um corvo e colladas sobre o peito d’uma rolla; os cabellos castanhos, esparsos, sobre a testa pequenina! Quando me separaram d’essa gentil camponeza, pouco tempo poderia ter já, para chorar o seu noivo ausente; tossia, e o seu lenço tingia-se com laivos de sangue desmaiado. Nunca mais voltei a saber o que era a sinceridade.

Conheci todos os espendores da côrte do Grande Rei.

Misturaram-me a quanta intriga doirada se urdia entre os velludos e as sedas dos cortezãos respeitosos. Beijei os seios da Montespan, presa do decote do seu vestido de gala! Nunca vi corpo mais roseo e branco, de que não póde dar idêa a alvura d’um jasmim córado pela candura d’uma creança! Cabellos mais loiros – raios de sol fundidos em fios ondeados! Olhos mais azues do que as proprias saphiras estrelladas!

Conde de Arnoso

O que Serão os Homens do Ano 3000, de Gustave Guitton, escritor francês que se dedicou à ficção científica, no final do século XIX ou no início do século XX, em parceria com Gustave Le Rouge ou sozinho, foi traduzido em 1908 por Bernardo de Alcobaça e trata de uma viagem ao futuro com intenções curativas.

Seguindo os amigos, entrou finalmente na Salla dos Athletas.

Era um enorme circo, apresentando no centro uma arena coberta com pó de mica.

Em volta d’esta arena, sobre a qual se erguia um zimborio de grande altura, largos portões communicavam com salas differentes destinadas a varios exercicios.

Na arena central, um grupo de rapazes, vestindo simples fatos de meia colleantes, faziam saltos arrojados. Uma vara graduada deixava comparar as alturas alcançadas por cada um dos habeis gymnastas.

Os olhos de Marcello esbugalharam-se de surpreza quando viu alguns dos saltadores attingir sem esforço apparente, seis e sete metros de altura.

— Mas como conseguem chegar a semelhante resultado?…

— Embora os nossos camaradas — respondeu Blas — tenham musculos verdadeiramente elasticos, não conseguiriam saltar da maneira que vê, se não os auxiliassem uns borzguins especiaes que trazem nos pés… Taes borzeguins, como poderá verificar, reparando, teem solas dobradas e estão munidos de poderosas molas. Basta um ligeiro impulso do saltador para o levantar como verdadeira bola elastica. E’ devido ainda aos mesmos borzeguins que podemos, quando o desejamos, saltar de um pulo do alto de qualquer torre, ou transpor um largo veio d’agua. Graça a tão engenhoso apparelho, o pezo do corpo fica sensivelmente diminuido.

Marcello deu-se ao prazer de calçar um par dos famosos borzeguins e executar uma série de saltos que, no seu tempo, teriam causado inveja aos mais celebres clowns, aos mais adestrados gymnastas.

Comtudo, sentiu-se humilhado. Apesar de todos os esforços, não conseguiu attingir metade da altura alcançada por Blas, Sergio ou qualquer dos que o acompanhavam.

— Decididamente, sou-lhes em tudo interior! — disse, procurando dissimular uma pontinha de despeito.

— Não deve causar-lhe surpreza que tal succeda — respondeu Sergio — Examine a nossa musculatura e compare-a com a sua.

— E’ certo — constatou Marcello, examinando com certo respeito os formidaveis biceps dos companheiros; os senhores têem todos uma musculatura que faria morrer de inveja o proprio Milon de Crotona.

E Marcello olhava-se com verdadeira amargura. Reparava nos braços magros e ossudos, nas pernas mirradas de parisiense anemico.

As Nossas Filhas. Cartas às Mães, de Maria Amália Vaz de Carvalho, escritora, retrata a condição feminina do início do século XX.

Como os Lyceus ou externatos, de que eu lhes fallei, não existem em Portugal nem existirão por largo tempo; como é quasi inutil recommendar aos paes de familia que façam, pela iniciativa particular, o que os poderes publicos não querem ou não sabem fazer; como o principio da associação, lá fora tão fecundo nos mais variados resultados, aqui, em Portugal, pouco mais tem dado que phylarmonicas para manifestações espontaneas a altos personagens publicos; como, emfim, não ha outros portuguezes, segundo dizia não sei que desenganado estadista nosso – a verdade é que, por emquanto, a educação das nossas filhas obedece a trez systemas.

O convento, o mais generalisado de todos; o collegio, adoptado por certa classe de burguezia rica; a mestra ingleza, franceza ou allemã, quer dizer a miss, a fraulein ou a mademoiselle, igualmente impotentes para formar um caracter e dar a um coração feminino o tratamento especial de que elle precisa para se tornar dôce, compassivo, affectuoso e puro.

Comments(2)

    • Maria Coelho

    • há 7 anos

    Muito obrigada! Excelente prosa para começo de ano! Especial o prefácio de Eça ao livro do Conde de Arnoso. Mas tudo muito interessante!

    1. Seja sempre muito bem-vinda!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *