Volto à Baixa lisboeta na primavera de 2022, quase três anos depois da última vez que por lá passei com bom tempo na rua, e temos a casa cheia de turistas. Diz-se que a pandemia está quase controlada… loucura. É bom ver a turbamulta de volta às ruas, mas é estranho ver tanta gente junta e maioritariamente sem máscara. Regressou tudo em massa; fala-se em revenge travel. Mas os serviços e a oferta estão com dificuldade em rearrancar e mais ainda em acompanhar a procura.
Nestes primeiros tempos, os restaurantes têm a oferta reduzida a metade ou menos. Nos espaços de restauração, as cadeias de hambúrgueres, sopas, pizas, saladas continuam a oferecer tudo nos menus, mas quando pedimos alguma coisa descobrimos que têm pouco mais de um terço do que prometem. E se pedimos variações ao produto-base, tudo se complica: em vez de cogumelos, prefiro espargos… está bem está! espargos…
Nos clássicos, como uma Ribadouro, peço o creme de marisco e não há: «a pandemia levou os clientes… como não há procura e isto é caro…». Claro! E se eu tivesse pensado bem, nem pedia nada que levasse marisco, sob pena de correr risco de vida.
Os turistas andaram desaparecidos e nós, em casa, passámos a cozinhar mais. Sentença de morte para muitos restaurantes! A hotelaria queixa-se de falta de empregados. Alguns, que tiveram de se reinventar durante a pandemia, estarão agora a trabalhar noutros setores, agradecendo provavelmente horários mais razoáveis e tempo para vida pessoal e familiar.
Nos hotéis mais exigentes acabaram-se os filtros finos que exigiam conhecimentos de atendimento ao público e de servir à mesa, elegância e medidas predefinidas; boas maneiras e tudo o mais que raiava a discriminação. Recruta-se agora qualquer um que tenha capacidade para mexer braços e pernas, para dizer alguma coisa; arranhando umas poucas expressões em língua estrangeira e pontapeando o português avonde.
No Chiado, entro na FNAC. Revelação das revelações: tudo o que se consumia em CD e afins está desaparecido. Os espaços de música, vídeos, filmes e videojogos estão quase vazios. Sobram umas míseras caixas nas prateleiras brancas. O presente digital está onde tem de estar: todo on-line.
Mas o mais surpreendente é que o passado mantém presença neste espaço: os livros continuam! Milhares de molhinhos de cadernos de papel, embrulhados em capas coloridas, objetos físicos do passado, dinossauros vivos. E pergunto-me eu: as pessoas continuam a ler ou é só para oferecer, para fazerem prendas interessantes, que demonstram intenção e peso intelectual? As pessoas leem! Algumas pelo menos; bastantes na realidade. Mais do que eu esperaria. Livros de ficção, livros de trabalho, livros de informação complementar, livros, livros, livros.
Entretanto, também voltei ao cinema. Com muito pouca gente na sala, senti-me em segurança. Questiono-me sobre como sobrevivem estes negócios. Eu sei que as pipocas são a verdadeira fonte de receitas, mas, sem pessoas, quem come as pipocas? Talvez as devessem vender para takeaway. Solução perfeita: pipocas fora das salas de cinema a patrocinarem o cinema!
Estamos à porta do verão e a guerra acontece na Ucrânia, enquanto já ninguém liga à COVID, que grassa por aqui, mais do que noutros países. Conclusão: temos cá ainda mais turistas, muitos mais. Números que superam a pré-pandemia e entopem o aeroporto, insuficiente há dez anos e, agora, com problemas sérios de vária ordem. E penso: que andarão estas almas a fazer por aqui? Revejo-me neles, a turistar nas terras dos outros com a leveza, a alegria e o entusiasmo de quem está de férias. Chegam as saudades de viajar.
Entre parte de 2019 e parte de 2021, vivi quase dois anos maioritariamente no campo, sempre sem máscara, e junto de muito mais serras e vales, árvores, vinhas e gado, do que de pessoas. As pessoas, via-as no computador: fizeram-se festas de aniversário, convívios, almoços e jantares; houve aulas, e até treinos de fitness. Trabalhou-se, primeiro das 9h às 19h e, depois, com os fusos horários já baralhados, trabalhou-se até às tantas, tudo em plataformas digitais. Começámos no Zoom e entrámos de cabeça no Teams. Deve ter havido outras plataformas, como a da Google, mas as duas primeiras impuseram-se.
Foram dois anos que, apesar de tudo, souberam muito bem. A vida no campo, o reduzido contacto humano e a concentração num só espaço geográfico foram bênçãos para uma alma eremita e dispersa, como a minha. Pude fazer passeios ao ar livre e sem máscara, e fui fazendo diários gráficos, onde registava os números da pandemia. Olhamos para eles hoje e quem nos dera, mas ninguém estava então vacinado e as consequências eram outras. Deixei de usar perfume e «roupas de sair», a ponto de pensar «para quê tanta roupa e sapatos». O que se poupou em combustíveis, viagens, férias e depilação, caramba!
Com a entrada em regime de trabalho híbrido, o convívio humano impôs a (fácil) adaptação à dupla máscara: a cirúrgica e, por cima, a máscara social nível 2 preta – para quem gosta de objetos intemporais como eu, a máscara preta entrou na classe dos acessórios elegantes. Não sei se a falta de oxigénio me queimou os últimos neurónios úteis, mas apreciei esta dupla proteção.
Também a supressão dos cumprimentos de contacto físico, em especial os beijos, foi uma bênção.
Fizeram-me falta as salas de cinema de onde a pandemia me afastou e, por isso, acabei por aderir a um fornecedor de streaming. Longo tempo me mantive longe das netflixes da vida, das séries infinitas e do binge watching, pela plena consciência de serem sugadouros de tempo e atenção, para além de pequenos mealheiros. Ao sucumbir, confirmei que entre os três canais da RTP e a RTP Play tenho oferta mais do que suficiente para ver bons programas sem me afundar num vórtice estupidificador e potenciador de dependências, a que agora chamam adições.
Sem distanciamento temporal, o balanço destes tempos é muito positivo. E, sim, a ressaca da vida no paraíso veio a seguir.
Nazaré Carvalho nasceu em Lisboa e trabalha em comunicação e edição há mais de 30 anos. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e é convidada do blogue da Bibliotrónica Portuguesa. Edição e fotografia: Ângela Correia.