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A grande diferença entre editar autores desaparecidos e editar autores vivos é a possibilidade de influência. Quando editamos um autor desaparecido, a última vontade que ele deixou expressa é o norte na bússola e o travão à mão do editor. É muitas vezes a quimera que nos obriga a trabalho árduo e a raciocínios labirínticos. Mas se somos editor crítico com a devida formação e a seriedade exigível, não nos custará abrir mão de gostos e reservas pessoais, para darmos a ler a última vontade expressa do autor.
Quando editamos um autor vivo, exercemos influência sobre a última vontade do autor (ou a primeira entre as últimas) e devemos fazê-lo dentro dos limites impostos pela boa prática e de forma responsável. Porque influência não é imposição, e a influência tem os limites da argumentação na negociação. Quem assina é responsável pela autoria e será o alvo da crítica; cabem-lhe, portanto, as decisões e o direito a tomá-las sem pressão.
Limite # 1: podemos dizer a um autor que ele ofendeu a gramática, explicar-lhe o que está certo e o que está errado, argumentar com a confusão do leitor… mas se o autor escolhe, informado, manter a ofensa à gramática, o editor terá de o aceitar; se aceitou, informado, editar o texto. Podemos dizer ao autor de uma biografia que corte um capítulo por se expor demasiado, confrangendo o leitor. Mas se o autor insiste em confranger o leitor, o editor igualmente o aceitará.
Limite # 2: o editor não faz propostas de alteração do original sem apresentar razões objetivas ao autor, abstendo-se cuidadosamente de opinar, se o fundamento for qualquer espécie de gosto. Por exemplo, um editor não dirá ao autor que mude a cor das unhas da personagem, porque o azul-turquesa é piroso. Mas razões de incoerência relativamente ao perfil da personagem poderão levar o editor a recomendar ao autor que mude a cor das unhas da personagem.
Limite # 3: o editor abstém-se rigorosamente de alterar, seja de que forma for, os horizontes do autor. A relação entre editor e autor é profissional (mesmo que não seja) e, portanto, no exercício de funções, o editor limita a sua influência ao ponto da inocuidade cultural. Por exemplo, quando um poeta popular, que sempre usou a redondilha, decide passar ao decassílabo porque o editor lhe disse que o decassílabo é verso mais nobre e lhe mostrou exemplos, o editor passou os limites.
Limite # 4: a influência desconhecida não é responsabilizável. Quem exerce influência sobre um autor não deve ficar escondido atrás de uma chancela, ou de uma etiqueta vaga como «diretor de coleção». Embora a prática já tenha sido mais rara, o trabalho de edição deve ser assinado e a influência assumida. Deixar dito: eu editei este livro, para deixar dito: eu aceitei os limites da boa prática de edição e, dentro deles, editei este livro.
O editor de originais é o ensaio geral antes da leitura pós-publicação, é o leitor especialmente «equipado» para defender os leitores e o livro junto do autor. Quando o trabalho de edição é bem feito, o autor sente-se servido pelo editor na busca de si próprio, e agradece. 
No caso do limite # 5, a direção da influência inverte-se. Certas decisões pertencem ao editor: tipos de letra, marcação com negritos e itálicos, alinhamento de abreviaturas, siglas, maiúsculas e minúsculas, numeração das páginas, títulos correntes, tratamento de parágrafos, capa… O autor poderá influenciar, mas o editor decide. E as posições na negociação invertem-se.
Sim, eu sei, a prática, os egos, as espadas pendentes…  mesmo assim: sempre precisamos de um fio-de-prumo, até quando a parede não endireita.

Ângela Correia

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