Caro Ricardo Araújo Pereira
Tenho pensado muito em si nos últimos dias. Tudo por causa de uma cantiga de Santa Maria medieval sobre um jogral imitador, ou «remedador», como na cantiga se diz. Gostaria de poder dizer-lhe o que exatamente pretendia o jogral com as imitações, mas o narrador é vago. Diz apenas que o jogral não fazia outra coisa senão imitar todos: «uus ben e outros mal». Poderíamos pensar significar isto que, por vezes, a imitação lhe saía bem e, outras vezes, mal.
Mas o narrador empenha-se muito em demonstrar o grande sucesso que o jogral tinha junto do público: diz que ele imitava tão bem que todos gostavam muito de o ver e que o recompensavam com bens valiosos. De tal forma que ele podia dedicar-se exclusivamente à arte de imitar pessoas.
Deduzo, portanto, que aquela declaração do narrador – imitar «uus ben e outros mal» – deve dizer respeito aos efeitos pretendidos com a imitação. Imitar realçando caraterísticas negativas para escarnecer, ou imitar realçando caraterísticas positivas para enaltecer. O riso, de que o narrador nunca fala, devia fazer parte das reações, no primeiro caso; as exclamações de admiração, no segundo caso.
Ora, como se sabe, o demónio é amigo do riso e, certo dia, seguindo os conselhos deste amigo do riso, o jogral fez uma imitação que lhe custou amarga recompensa. O narrador só diz que, ao passar por uma porta onde estava uma imagem de Santa Maria com o menino nos braços, resolve imitá-la. Jesus Cristo não gostou, e por não ter gostado se depreende que a imitação visava o riso, e logo no meio da rua…
O jogral recebeu o castigo divino de lhe ser deslocada a boca, o bigode e a barba para junto da orelha, além de lhe ser torcido braço e pescoço, de tal forma que não consegue ter-se de pé. Socorrem-no imediatamente quantos o veem nesta aflição, levando-o para a igreja. Ali, as gentes assumem o protagonismo das súplicas ao divino, para que seja perdoado o jogral imitador, e um milagre o venha salvar. Dir-se-ia um público aflito com a ideia de perder quem o faça rir.
Muitas vezes ouvi já humoristas confessarem dificuldades em fazer humor com elementos religiosos, aqui na nossa terra. Noutras terras, outros humoristas continuam a pagar tal atrevimento com a vida ou com o silenciamento. Nesta cantiga de Santa Maria se veem raízes de tais dificuldades. No refrão, repete-se a explicação para o castigo: Deus fez o Homem à sua imagem; deve portanto o Homem amar Deus mais do que a si próprio. Imitar a imagem de Santa Maria com o menino nos braços, para fazer rir, é, do ponto de vista desta cantiga, um ato mais aproximável do demónio, e seus conselhos, que do amor devido ao modelo da figura humana que é Deus. Assim se explica que o castigo do jogral tenha sido perder a figura de gente, que foi feita à imagem de Deus.
Ao jogral «remedador» valeu um público reconhecido, e também o arrependimento. Santa Maria lá fez o milagre de o curar.
Talvez se pergunte, Ricardo Araújo Pereira, por que me fez lembrar de si esta cantiga sobre o jogral imitador e dedicado público. Ouvi dizer que é colecionador de textos sobre humor, por isso aqui lhe deixo este, atribuído a Alfonso X, o Sábio, rei de Castela e Leão entre 1252 e 1284. Deixo-lho na edição de Walter Mettmann, publicada em Madrid, entre 1986 e 1989, pela Castalia. E se acaso se interroga sobre a razão de um rei castelhano ter usado a nossa língua (partilhada com os Galegos) para fazer cantigas, deixe-me acrescentar que a usou (ou mandou usar) para fazer mais de 400. E que todos os trovadores, fosse qual fosse a língua materna deles, quando queriam poetar, era em galego-português que o faziam.
Até sempre,
Ângela Correia
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
José Serra
Deliciei-me e aprendi. Que mais se pode esperar de uma leitura?
Ah! E sorri.
Angela Correia
É muito amável o seu comentário. Obrigada,