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Um homem entrou e ocupou o banco ao meu lado. Eu nem levantei os olhos; não estava interessada em nada, olhava pela janela. Passados dois minutos:

— És de Lisboa? — perguntou ele.

Eu não respondi.

— És de Lisboa? — repetiu.

— Sobretudo.

Levantei-me do banco e saí na paragem.

O homem saiu também. Olhou-me e disse qualquer coisa que eu não quis ouvir. Depois afastou-se devagar na direção oposta.

Não suporto sacanas como este — pensei.

Cheguei a casa. Abri a porta e entrei.

O telefone tocou. Era o namorado.

— Ouve lá, estou farta das tuas bebedeiras.

— Não foi assim tão mau. — respondeu ele.

— Foi sim. Não vou aturar mais isto.

Desliguei. Abstive-me de pensar mais nele. Depois voltei a pensar nele. Telefonei de volta.

Ele atendeu:

— Sim?

— Gostavas de jantar comigo amanhã à noite? — disse arriscando.

— Já estás com saudades? Então já não sou um bêbado? — disse ele.

Desliguei. Raios me partam! Que sacana de azar! Se soubesse não teria ligado. Ele que se lixe. Malditos homens!

Fui à cozinha comer qualquer coisa. De repente, um estrondo vindo lá de fora. BUM! Fui ver. Abri a porta. Era o casal de vizinhos do lado. O barbeiro de rosto briguento olhou para mim. A clarinetista com as roupas imundas de sangue e um golpe na testa disse, rolando em seguida para o chão: «Amamos aquilo de que precisamos!». Depois, subitamente, o barbeiro agarrou-me e começou a rasgar-me a camisa. Eu bati-lhe na cara, mas ele continuava. Eu bati-lhe outra vez e outra vez, mas ele parecia não sofrer nada. Senti um súbito e violento puxão na saia, um esticão oblíquo, que não consegui evitar porque fora demasiado brusco. Baixei os olhos e de forma eficaz espetei-lhe o tacão do sapato no peito do pé — ZÁS — ao mesmo tempo, entrei em casa e fechei a porta. Rodei duas vezes a chave. Coloquei a corrente de segurança. Estava em choque. Os pensamentos avançavam acompanhados por pequenos arrepios. Pus-me a poisar os pés alternadamente no chão à medida que voltava a cabeça para um lado e para o outro, como quem lança um feitiço. O barbeiro batia à porta violentamente — BUM, BUM, BUM. Olhei em volta, com medo de que alguém escutasse os meus pensamentos. Compreendia bem o que tinha de fazer. Olhei-me ao espelho e encontrei cumplicidade. Trouxe uma faca da cozinha. Prendi a faca no soutien, debaixo do braço. Tirei a corrente de segurança. Rodei duas vezes a chave. Abri a porta. Os olhos dele, cor de bronze, fixaram-me. Agarrou-me e caímos no chão. Ficámos próximos, muito próximos. Colou-se aos meus lábios e enfiou a língua na minha boca. Alcancei a faca e com toda a minha força furei-lhe o pescoço. Depois, fiquei a escutar o silêncio. Absorvida por aquela grandeza auditiva. Saí debaixo dele. Estava livre. Dirigi-me à cozinha, enquanto pensava na minha existência deformada… amaldiçoados homens. 

Hélio Sequeira

Os Invulgares

Comments(2)

    • José M. Serra

    • há 4 anos

    Impactante!

    • Hélio Sequeira

    • há 4 anos

    Obrigado pelo seu comentário.

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