Levanto-me cêdo, mais cêdo que de costume, e emquanto se prepara o mata-bicho vou novamente visitar a fabrica, sem me fazer acompanhar, porque sósinho é que eu vejo bem as coisas, fabricas ou museus, ordinariamente fazendo estas visitas mais para me emocionar que para me instruir.
Muito á minha vontade, sem que ninguem me destraia, vou examinando tudo, desde as queixadas de ferro que mastigam a cana, até á maquina que cose os sacos, maravilhando-me a harmonia que ha n’este inferno, a ordem que ha n’este labirinto. Rodas enormes, que giram n’uma vertigem; rodas mais pequenas, que se movem lentamente, umas n’um sentindo, outras no sentido oposto; embolos d’aço que parecem tomados de furia; correias froixas, correias tensas, de tal modo froixas umas que parece não realisarem um trabalho util, a tal ponto esticadas outras que a gente recua, instinctivamente, a ver que ellas se rompem d’um momento para o outro, e um bocado, como um zagalote, nos manda d’esta para melhor. O jogo d’estas peças tem ar de brincadeira, como se fossem marionetes, e só por vergonha é que não pergunto ao engenheiro-chefe, vestido como um operario, quasi tão negro como se fosse indigena, e quasi tão sujo e oleozo como se fosse um lagareiro, se na contextura d’este organismo só ha o que não poderia faltar sem prejuizo do seu funcionamento.
Nunca tinha visito um estabelecimento como este, a trabalhar com toda a força, d’uma complicação que estonteia e ao mesmo tempo d’uma harmonia que enleva, rithmico nos movimentos que executa, ensurdecedor nos sons diversos que produz, como um jazz-band infernal, que não pergunte a mim mesmo se é uma só, no Universo, a força que tudo anima, principio incoercivel que nas pessoas se chama alma, e nas fabricas se chama energia.
in Brito Camacho, Pretos e Brancos
Manuel de Brito Camacho nasceu em 1862, em Rio de Moinhos, concelho de Aljustrel. Formou-se em medicina, mas foi jornalista, deputado e governador ultramarino. Fundou o jornal A Lucta. Deixou contos, crónicas e literatura de viagens.
O livro Pretos e Brancos foi originalmente publicado em 1926 e é o diário de viagem que Brito Camacho escreveu após uma estada em Moçambique, na qualidade de Alto Comissário do governo português. Descreve nele lugares, povos e costumes, oferecendo assim um documento histórico de encontro entre culturas, nos anos 20 do século XX.
A Bibliotrónica Portuguesa publica agora a reedição deste livro, devendo um agradecimento especial a Cristiane Oliveira, que assegurou a revisão.
armando sousa
“Retalho” interessante de um livro que, a avaliar pela narrativa, suscita interesse na leitura integral do mesmo. Brito Camacho, como inúmeros outros “retratistas” de tempos que não vivemos, merecia um pouco mais de atenção dos editores de hoje. Fico grato à Bibliotrónica.