Caro senhor agente 66
Venho dizer-lhe que encontrei a sua casa num passeio de domingo, e aproveito para lhe confessar que, achando-a aberta de todas as portas, portões e janelas, ousei entrar. Lamento informá-lo de não me parecer provável que a primavera a vá encontrar de pé. Pelo menos se o senhor-escuro-frio-e-mau, que se aproxima, nos compensar da míngua de água em que nos deixou no ano passado. O chão da sala começou já a inclinar-se para engolir os móveis que a ele se vergaram deslizando um contra o outro, e o teto das divisões da frente, desapoiado das paredes caídas dobra-se libertando tábua fina sobre a terra e os tijolos ruídos. Passei no corredor atentando para não me deixar prender nas gargantas abertas do soalho.
Lamento os estragos na pintura em trompe l’oeil do lambril, senhor agente. Mas lamento mais a condenação que pende insofismável sobre os seus móveis estilo Estado Novo. O meu impulso para a salvação deles foi toda uma dor; o meu coração era só mãos e flexões, nem imagina. Mas já os leva a casa, a bicharada, os fungos: aquilo é o tempo para ali a largar excrementos. Reparei, senhor agente, que os seus móveis foram escolhidos a preceito. Além de não destoarem, há pormenores que assinalam distinção. Excetua-se um pequeno bloco de gavetas vermelhas, forradas com papel florido. Espúrio, infantil: é outra história que conta.
Reparei nos seus sapatos amorosamente arrumados dentro da sanita, e no esqueleto de um animal que não identifiquei junto às escadas para o sótão. Na cozinha, senhor agente, o seu livro sobre fórmulas para documentação policial lá está aberto sobre as gavetas do armário. Pude ver a sua sombra a consultá-lo, no tempo de espera por alimentos ao lume. E pelo chão a revista azul de rendas ainda se alvoroça com a aragem que passa livre. A mulher que a trouxe pouco mais deixou.
Estava no lava-loiça o documento que é uma janela sobre umas quantas vidas em cruzamento com a sua. Talvez ainda se lembre da capa de papel azul cosida em ziguezague com linha branca, agora parcialmente comida, dobrada, rasgada. Leio a sua letra em tamanho generoso a lápis azul referindo o serviço prestado num destacamento de julho a setembro. Trouxe-o para ver se nos entendemos melhor. Não me leve a mal. Procuro uma resposta que o senhor agente não me dará. Pois que fazia na sua casa um documento pertencente à secretaria judicial? Deixe-me ver se compreendo, sim?
Em setembro de 1935, Hitler assinou as leis de Nuremberga retirando com elas a cidadania alemã aos judeus. Em outubro, Mussolini invadia a Abissínia que ora chamamos Etiópia. Em Portugal, reuniu pela primeira vez a Assembleia Nacional, acabada de eleger na sequência da Constituição de 1933 e, pela primeira vez, havia mulheres entre os deputados. Três mulheres em 90 deputados, senhor agente. No mesmo ano de 1935, revia-se a Constituição para limitar os poderes dos deputados, aumentando os do governo, liderado por Oliveira Salazar. Fernando Pessoa morreria em novembro.
Ciente ou inconsciente destes acontecimentos, na secretaria judicial de uma aldeia portuguesa, ou talvez na sua belíssima casa onde a ruína seria ainda tão insuspeita, o senhor agente escrevia sobre vidas que a peneira das enciclopédias não retém, nem incomodam o curso da História. Mas cuja exposta matéria humana muito condiciona o curso da História, à margem das enciclopédias. Assim:
Ex.mo Senhor
Administrador do Concelho de G.
Participo a V. Ex.cia que pelas 10 horas quando procedia ao enterregatório de Erguacio Constantino, casado, de 42 anos, [de idade] natural de G., por este querer passar umas serras para os presos fazerem uzo de arrombamento na cadeia, e quando se dirigiu ao posto policial o cassareiro Augosto Gabrinho pedindo se o deichava ouvir o preso, e como esto declarou que as ditas serras eram para fins de arrombamento, então o mesmo cassareiro agradiu o preso com uma bufetáda dentro do pôsto policial, e por isso vai ser comunicado a V.Ex.cia para os fins que julgar conviniente. Não a presento testemunhas pelo motivo de as não ter.
G. 11 de setembro de 1935
O Guarda n. 66
Espere, senhor agente, espere espere. Tenho dúvidas. A sequência temporal e espacial dos acontecimentos levanta questões. Ora então, devagar e por ordem: na cadeia, o tal Constantino tentou passar serras aos presos para eles arrombarem as celas e fugirem. Foi apanhado e levado ao posto policial, onde o senhor agente 66 o interrogou sobre o sucedido. Estando em curso o interrogatório, o carcereiro veio da cadeia, onde o tal Constantino tinha sido apanhado a passar as serras aos presos, e pediu para falar com o detido. Não sem eficácia: ao carcereiro, o Constantino confessou o objetivo das serras que tentava passar na cadeia quando foi apanhado. O senhor, meu caro agente 66, lá escreve que o carcereiro pontua a confissão com uma bofetada, e sublinha que tal aconteceu no posto policial.
Mas olhe que esta repetição de indicação espacial faz-me torcer o nariz: pois onde haveria de ter sido dada a bofetada, se já tinha sido dito que o carcereiro estava no posto para falar com o detido? E que, enfim, tudo acontece ali? Tanto zelo dá-me a ideia, senhor agente — eu posso bem estar enganada, mas dá-me a ideia — de que o Constantino nem apanhou só uma bofetada nem apanhou no posto policial. Também me dá ideia de que a confissão não foi obtida no posto, e de que o carcereiro e o senhor agente 66 estavam unidos por certa amizade. Nem que fosse só amizade institucional, se me faço entender.
Ficou o Administrador do Concelho informado, e nada sabemos sobre o que decidiu quanto a bofetada e a serras; quanto a Constatino e Gabrinho, cada um com seu pecado, um mais, outro menos defendido pela letra do requerimento sem testemunhas.
(continua)
Ângela Correia
(editado por Nazaré Carvalho)
Nota — a transcrição do documento de 1935 segue as regras das edições paleográficas ou diplomáticas: reprodução do que se encontra no documento sem nenhuma emenda (o parêntese reto significa acrescento posterior pela mesma mão). Foram, no entanto, abreviados alguns nomes próprios e nomes de localidades.