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Continuava a ir lá sempre que podia nas minhas tardes: as partidas de xadrez no clube recreativo favoreciam-me a memória e o raciocínio. Aprendi a jogar aos 13 anos. Avançava pela cozinha a pensar no jogo daquela tarde, quando as paredes começaram a andar à roda. Dirigi-me ao lava-louça e comecei a vomitar. Sentia a língua grande e as orelhas em brasa. Enchi um copo com água e despejei pela cabeça.

— Ó diabo! Posso ser o próximo ou quê? Pus-me eu a pensar, confuso e com medo de morrer naquele momento. Depois, sem mais nem menos, senti um derradeiro choque pelo corpo e tombei. Quanto tempo demorou, não sei. Talvez uma hora. Depois voltei a mim e sentei-me no sofá. Estava vivo. Deixei-me ficar ali. O telefone tocou. Levantei-me devagar. Era a minha sobrinha.

— Tio Álvaro — disse ela de impulso — não fala connosco há mais de 15 anos. Porém, acho que deveria saber que o meu pai teve um acidente vascular cerebral. Os médicos dizem que foi grave, mas a recuperação parcial é possível; contudo vai levar o seu tempo.

— Oh, por amor de Deus… — disse eu.

Ela desligou.

O meu corpo mordia-me por um lado e o meu espírito roía-me pelo outro. Era inegável aquela coincidência obscura. O meu único irmão tinha sofrido um AVC na mesma noite em que eu tinha sentido aquele choque arrebatador! A linguagem da vida.

Fomos inseparáveis durante toda a vida até àquela discussão estúpida, sem sentido. O álcool e considerações de ordem secundária a interferir na lucidez dos nossos instintos. Arriscava nunca mais ver o meu irmão vivo. Procurei uma nova posição de fuga à intensa agonia e sofrimento que aquele afastamento me causava. Pouco a pouco, comecei a escutar as minhas ideias e as várias combinações que poderiam permitir a jornada. Tinha 74 anos e batalhões de tormentos. Não se tratava apenas de dor física, também havia recordações do passado, de quando era mais novo. Juntei forças. Deixei-as atuar. Fiquei surpreendido. Podia dar-me ao luxo de desprezar o regresso.

Lembrei-me do minitrator japonês Kubota. Usava-o para a prática da pequena agricultura. Decidi que seria o meio de transporte. Talvez a limitação escolhida tivesse algo que ver com a rapidez da decisão. A vida é minúscula. A mansidão da estrada esperava por mim.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

Comments(6)

    • João Pires

    • há 6 anos

    Bravo. Excelente conto, passando ao leitor diversas emoções. Parabéns

      • Hélio Sequeira

      • há 6 anos

      Muito obrigado pelo seu comentário.

    • fernanda campos

    • há 6 anos

    Maravilhoso texto! Parabéns! Raro ver assim uma coisa tão boa, tão bem escrita, na despretensiosa Bibliotrónica Portuguesa. Sem desmerecimento para este site, como é óbvio.

      • Hélio Sequeira

      • há 6 anos

      As suas palavras são motivadoras. Obrigado.

    • José Serra

    • há 6 anos

    Como conseguiu isto, (há aqui sabedoria), sem ter passado ainda pelo “amadurecimento experimental da idade”, forma pseudo-intelectual de dizer velhice?
    Que seja mansa a viagem…
    (Mas se for sempre mansa…)

      • Hélio Sequeira

      • há 6 anos

      Obrigado pelo seu comentário.

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