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Uma das coisas que mais queria quando era muito criança era ir ao cinema. Mas ainda não tinha idade. As minhas primas eram ligeiramente mais velhas do que eu, mas já tinham idade para ir ao cinema. Eu tinha muita inveja delas. Lembro-me de passar à porta do Tivoli na Avenida da Liberdade e de o Tivoli ter uma tarja a toda a volta do edifício, uma espécie de tiara de Carnaval para um edifício. Isto era absolutamente mágico e ainda por cima o Tivoli é um prédio de esquina, um palacete arredondado. Ir ao cinema, ir ao Tivoli, era um encantamento, uma coisa de conto de fadas.

O filme que mais queria ver era a Música no Coração. Estreou nessa altura, mas eu não tinha idade para ver. Mas tinha quase idade. Isto assim ainda era mais terrível. Uma tarde, a uma matinée, a Tia Paulina, minha tia-avó, e uma velhota da idade dela, a nossa vizinha do segundo andar, a que eu chamava Avó Alice, e eu metemo-nos todas num táxi e fomos para o Tivoli tentar a sorte. O Tivoli estava cheio, o hall do Tivoli. A Avó Alice tentou subornar o porteiro, a ver se eu entrava. Mas o porteiro não foi na conversa. Voltámos as três para casa furiosas com o mundo, e acho que as velhotas vinham furiosas comigo por eu ser nova demais, criança demais, por não ser da idade delas. Toda a vida me censuraram por ser nova demais, por ser criança. Ainda hoje é um bocado assim. Reparo que tenho quase 60 anos, a idade da Tia Paulina e da Avó Alice naquele tempo do Tivoli e da estreia da Música no Coração.

Só mais tarde pude ver a Música no Coração. Fui com a minha mãe. A minha mãe lia-me as legendas. Uma velhota ao lado ralhou com a minha mãe por ela ler as legendas em voz alta. A Música no Coração era absolutamente sagrada para as velhotas. Desforrei-me a ver a Música no Coração umas seis vezes. Ia com a minha mãe ou com a minha avó materna. Até aos 10 anos não queria ver outra coisa. Fiz bem. Aos 10 anos uma colega minha da escola, que tinha a minha idade, mas que era toda intelectual, coisa que eu nunca fui, disse-me que a Música no Coração era uma porcaria, o que era bom era L’Enfant Sauvage de Truffaut. No fim da adolescência, li uma entrevista de Truffaut em que Truffaut dá como caso de cinefilia uma velhota inglesa que sabia de cor os diálogos da Música no Coração. Tive a sorte grande de não ter uma infância intelectual.

Adília Lopes

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musica_no_coracao

One Comment

  1. Gosto do que escreve e de como escreve. E também gosto que partilhe as suas memórias. Diz-se que os portugueses são avessos à partilha das suas memórias. Talvez agora já não seja tanto assim. Pode ser que agora já estejamos longe daquele tempo em que predominava a ideia (condenação) de que quem falava de si, aos outros, quem se expunha, estava a desvendar-se publicamente, e isso era coisa que só na confissão religiosa se tolerava – e incentivava.
    Parabéns.

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