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Lá fora faz um frio de doer os ossos e uma escuridão de hibernar a alma. Aqui dentro, eu tomo um pisco chileno que me deste e nunca tomamos. Eu penso em ti, faço escrita, invento.

Brinco de pegar palavras, tento cifrar e decifrar, juntar, e sobretudo tento deixar. Porque é difícil deixar o que nos deixou. Nem sempre há sentido. Pois é sem sentido que estamos. É juntos e do avesso que somos. Eu, meu amor, a escrita, minhas vísceras.

Sem sentido, pego um livro, depois saio, vejo pessoas, leio no muro: «amar-te é um privilégio», quanta vida, assisto o dia, sento, sinto. Passos, passa gente e mais gente, mas nada passa.

Sem hora marcada, entre uma louça e outra, vejo tudo de novo. Me olhas. Sempre teus olhos a me desafiar, a me dizer coisas. Queria mais, querias mais, queria ter sabido, rido, dito, não dito, cantado, comido, dormido, tudo. Céu, fundo do mar, respirar, respiro. Eu preciso.

Meu amor já ido, já lido o dito. Com voz de sono me dizias, apaga a luz, vamos dormir, amanhã é fevereiro, já. Meu amor lia a minha escrita e respondia: gostei. Eu, de palavra em palavra, te via, te queria, te sorria. Eu, em estado de graça.

Ontem sonhei com a casa de sol, o gato cinza na janela. Eu via palavras despencando do teto, suando nas paredes, saltando no chão, piscando feito pirilampo, cantando feito sabiá: vou voltar, vou voltar. Era nós dois de chinelos dançando um bolero na nossa casa.

Voltar: virar, volver, regressar, retornar. Li no dicionário da biblioteca. Mais de duas mil páginas: quem lê tantos verbetes? Seria o mundo lexical mais legal? Talvez melhor fosse um mundo mais calado, mais amado, mais poético. Só na poesia a palavra é livre. No silêncio, há consenso. Voltei pra casa, agora te escrevo, escrevo e apago… já é madrugada e eu só tenho um parágrafo. Daqui debaixo do cobertor de lã, eu penso em ti e apago a luz. Tu me ensinaste o silêncio, mas esta escuridão completa o disparate. Me viro e reviro na cama e para conseguir dormir, conto pretextos.

Cristiane de Oliveira nasceu em São Paulo e trabalha na biblioteca da OMS em Genebra. Frequenta o curso Escrevendo Poesia da Oxford University, e é convidada do blogue da Bibliotrónica Portuguesa. Edição e fotografia: Ângela Correia. 

Comments(4)

    • Bianca

    • há 4 anos

    Beautiful, a profound moment of reflection about love and not to ❤️

      • Cristiane de Oliveira

      • há 4 anos

      Bianca: many thanks for your comment. Amar ou não, não deveria ser uma questão. 🙂

    • Francisco Salvi

    • há 4 anos

    Con la traducción de Google he podido leer a Cristiane de Oliveira desde Buenos Aires . Sus palabras son bellas y me han dejado una sensación de que su soledad es transparente.

      • Cristiane de Oliveira

      • há 4 anos

      Francisco Salvi: muchas gracias por su lectura desde Argentina y su amable comentario. Saludos, Cristiane

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