Logo Loading

Muitos anos se passaram até este fim de tarde na roça. Na cozinha, lavo as mãos e acendo o fogo. Sou o caçula e me ocupo da horta, das refeições, da roupa e da casa. Começo guardando a louça seca da refeição anterior, para depois arrumar a mesa. Estendo a toalha, coloco três pratos, três colheres e três taças. Só então começo a cozinhar. Gosto de ordem e limpeza. Há quem diga que sou bom cozinheiro, ainda que cheio de manias, como a mamãe.

A mamãe não suportou a vida com dois homenzinhos e um ogro triste, como dizia do pai. Foi-se embora com o desejo de ser itinerante e solteira do outro lado do monte, onde o rio é mais perene. Concretamente, mais nada restou de feminino nesta casa, além do quadro de bailarinas gordinhas que ela mesma pintou, inspirada em Botero, e da cachorra Luna.

Tudo pronto. Espero. Quase sempre o pai chega da fábrica de mau humor. Quem vê pensa que deve trazer fome, mas não. Ele não conhece a vida de bonança, o pai. Na sua luta, pinta o mundo de daninho. Abro a porta e ele entra de chapéu na mão. Vai-o logo pendurando no cabideiro, junto ao surrão a tiracolo. Tem o ar de quem caiu no ciclo vicioso da rotina.

Às 8 horas, nos sentamos à mesa: o irmão, eu e o pai. Hoje estamos todos. Sirvo-lhes vinho e o pai pergunta se já temos abóboras. Justamente, fiz sopa e quiche. Há também framboesas frescas. Brindamos e passamos o cesto de pão. A hora da janta não é um momento de muita conversa. O pai é lacônico. Não aprecia falar de vazios do dia com a boca cheia. Mas hoje estamos os três e é fim de semana. Animado, o irmão nos conta anedotas sobre a vida na universidade e na cidade. Vejo o infinito e acho graça, enquanto o pai tem os olhos bem abertos. Sei que está orgulhoso e que ainda é capaz de sentir conforto. Pois hoje estamos juntos, os três, e temos abóboras.

Eu diria que é um acaso feliz, a vida.

Cristiane de Oliveira nasceu em São Paulo e trabalha na biblioteca da OMS em Genebra. Concluiu o curso Escrevendo Poesia da Universidade de Oxford, e é convidada do blogue da Bibliotrónica Portuguesa. Edição e fotografia: Ângela Correia. 

Comments(9)

    • Jose Leão

    • há 3 anos

    Muito bonito. Excelente, mesmo !! Obrigado pelo prazer que me deu lê-la.
    José Leão

      • Cristiane

      • há 3 anos

      Fiquei contente com seu comentário, muito obrigada.

    • Florêncio Magina

    • há 3 anos

    Muito agradável a suas palavras…

    Bom trabalho.

    • Patricia Felisbino

    • há 3 anos

    Muito bom! Gostei do texto e dos sentimentos vivos que traz.

      • Cristiane

      • há 3 anos

      Muito obrigada, Pat. Que bom que você leu e gostou!

    • Alexandra Nunes

    • há 3 anos

    Leve e gostoso de ler!

    • Silvia

    • há 3 anos

    Texto lindo, muito bem escrito!

    • Paulo Pepe

    • há 3 anos

    Senti odores, ares e sensações.
    Lindo.

      • Cristiane

      • há 3 anos

      Gostei muito do seu comentário, Pepe. Obrigada!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *