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Tudo isto é mar, antes azul. Sozinho, sentado numa ilustre duna, sentia o perfume do mar algarvio. No inverno, a ondulação era possante, a água escurecia e tudo ficava mais lento. O mar mantinha-se imperfeito, dia após dia. O vento frio insistia em roçar-se pela cara barbuda, enquanto tentava perceber a gélida melodia das vagas. O mar estava ali e não me deixava mentir. O que eu pensava fora em tempos escrito na areia, depois apagado pela espuma salgada, que nada conserva.

Daquela oposição aberta, fértil em desacerto, eu e o meu pai tiráramos um significado: o balancear agitado da vida como que vai moendo os nossos sentimentos, e as ondas, que constantemente nos atingem, vêm acompanhadas de ventos rijos, que tudo consomem.

No coração do meu velhote, havia um grande descontentamento: que o único filho tivesse escolhido também a vida do mar. Considerava que já tinha perdido família suficiente no oceano cruel. Lembro-me de ele pedir ao meu tio, barbeiro, com estabelecimento aberto havia mais de 20 anos em Lisboa, que me recebesse e me ensinasse a profissão. O tio, pessoa de ânimo largo e generoso, respondeu-lhe logo afirmativamente. Dizia que ser barbeiro era uma profissão igualmente honesta, porém, menos arriscada que a vida de pescador. Tudo induzia à moderação e a que fizéssemos as pazes; contudo, como poderia eu ser barbeiro? Sou mudo. Tinha tido uma meningite, com a idade de meses, que me tinha levado a fala para sempre. Nunca poderia tagarelar com a clientela. Seria uma dor de alma. Para mais, que há de fazer o filho de um pescador senão pescar? Nesta vida, é assim.

O meu pai nunca quebrara de forças, mas agora, o certo é que desaparecera. Nunca julguei. Para mim, ele era imortal; só que à morte ninguém escapa. Nem o santo, nem o pecador. Afinal, morrera na sua cama, no seu berço, em terra segura; longe das vagas afiadas que se insinuam debaixo dos barcos e nos arrastam para baixo, sem misericórdia.

Gritei. Um grito mudo. Silêncio asfixiante. Dor de existir. A alma que logo submerge às profundezas. Pobre pai. Pobre de mim. Jamais o som das gaivotas, lá longe, me pareceu tão barbaramente cortante, tão selvagem e escassas vezes a voz do mar chegou até mim mais confusa, mais maldita. Senti-me incapaz de agir, fora do círculo de estima humana. Queria ouvir o eco da minha voz, até a vida passar a ser vida.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

Comments(2)

    • Manuel Sá

    • há 3 anos

    Gostei muito. Obrigado.

      • Hélio Sequeira

      • há 3 anos

      Obrigado pelo seu comentário.

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