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Quando entrei na capela, ela já lá estava. Corria aquela azáfama miúda que toma conta das pessoas, quando os acontecimentos as sacodem para fora do trilho habitual. Apesar de a passagem da vida pela capela mortuária já se adivinhar havia dias: o avô tinha caído de uma oliveira, tinha sido hospitalizado e a evolução não tinha sido boa.

Quando cheguei à capela, a avó já lá estava. Sentada no banco corrido de madeira destinado aos que esperam junto ao caixão, vestia de negro dos pés à cabeça, onde um lenço de lã atado sob o queixo lhe emoldurava face e cabelo, ambos muito brancos, quase translúcidos. Esta minha avó sempre adotou uma fina película de cortesia para manter as pessoas a confortável distância. Um sorriso franco e o mínimo de palavras reativas de circunstância mantinham-na a salvo dos outros. Não me lembro de ter testemunhado uma conversa demorada entre a avó e nenhuma pessoa. Certamente, nunca a teve comigo; sempre a vi feliz ou mesmo comovida quando rodeada dos que lhe eram próximos, mas sempre distante. Nos últimos anos, depois das refeições em que por vezes nos encontrávamos, oferecia-lhe um café propondo uma «entrega ao vício». Via-lhe então uma singularíssima contração, um olhar de realmente reparar; depois, compreendendo o exagero, um sorriso cansadamente gargalhado, uma anuência inteligente. Vejo agora, neste preciso momento, que rasgar por um instante a película de fina cortesia da minha avó era o que me levava a repetir, uma e outra vez, a brincadeira parva do café.

Quando cheguei à capela, a avó, sentada no banco de madeira, era a fotografia a preto e branco de uma mulher do campo muito magra, em trajos de luto carregado, sem forças para se envolver convenientemente na habitual película de cortesia. Mantinha os olhos fixos no vazio, agarrando um lenço branco muito amarrotado na mão direita. No caixão em frente, jazia o companheiro de 60 anos, e a minha avó mostrava-se exausta. Certamente não dormira, não comera e já não chorava, nem nada tinha para dizer a ninguém. Em volta, a inquietação miúda das pessoas desviadas do trilho quotidiano, ansiosas por um papel relevante no teatro dos acontecimentos emergentes.

Pela janela daquele canto da capela entrava uma luz incómoda. A minha avó sofria olhando as mãos agarradas ao lenço amarrotado sobre o colo negro, quando uma das minhas tias se aproximou com umas bolachas e um pacote de sumo. Ansiosa por praticar o bem, a tia amaciou a voz para convencer a avó a alimentar-se, usou argumentos pouco racionais, mostrou os alimentos esperando que a vista destes despertasse milagrosamente o apetite da avó. Se fosse possível, a tia teria recolhido ao colo a nova viúva e tê-la-ia alimentado à boca. E teria depois ostentado o troféu do seu discernimento e simultânea capacidade de imposição para a salvação.

A avó manteve-se de olhos baixos primeiro. Mas quando a minha tia lhe poisou despudoradamente a mão no ombro, a avó levantou com firmeza a mão branca e pesada exigindo o fim daquela cena. Nem uma palavra dita. Nem a caridade de um olhar. E a tia recuou, usando um risinho frouxo para recuperar a face. Regresso inúmeras vezes àquela capela mortuária, àquela luz incómoda. Sempre que uma sombra se aproxima, mais ou menos dissimuladamente, mais ou menos gentilmente, para me forçar. Sempre que me vejo levantar, de uma ou de outra forma, o mesmo gesto armado de silêncio, o mesmo impiedoso sabre. A minha avó nunca falou comigo fora da fina película de cortesia que a protegia dos outros. Mas recolhi ali lição que teria dado para uma longa tarde de conversa. Em nos chegando para tanto a liberdade, não fala connosco quem quer, mas quem pode: para uma conversa, são precisos dois.

Ângela Correia

(Edição: Nazaré Carvalho)

Comments(3)

    • Regina Azevedo

    • há 4 anos

    Texto cru, a preto e branco, sem película de cortesia, mas tão bonito!

    • Cristiane de Oliveira

    • há 4 anos

    Temos muito a aprender com a avó e com esta escrita. Obrigada.

    • Ângela Correia

    • há 4 anos

    Grata à Regina e à Cristiane, pelos comentários de quem leu para lá da superfície. Muito grata.

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