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Saiu na primavera de 2018 uma coletânea de contos de Mário de Carvalho com o título Burgueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos, num livro com a identidade visual que a Porto Editora criou para o escritor, desde que este passou a publicar ali, em 2012. O mesmo tipo de ilustração, o mesmo conjunto de duas cores chamativas (neste caso, o preto e o rosa-choque), o mesmo lettering destacando na capa os únicos elementos que ali encontramos escritos: o nome do autor e o título do livro.

A prosa de Mário de Carvalho é das admiráveis da literatura portuguesa em publicação, pelo que o leitor tem sempre garantidos momentos de elevação ao lê-lo. Elevação pelo prazer da prosa, mas também por sempre se aprender com um escritor que domina a língua portuguesa com destreza e arte, além de ter como uma das suas marcas o recurso a vocabulário incomum, que usa com rigor e sapiência, no desenho de ambientes e figuras. Deixo um exemplo:

Anos prístinos, eu assisti à desenvoltura com que Luís Jorge fez frente a dois rufias de bairro, numa rua de Alfama, quando no rescaldo da manifestação, tentaram cumpliciados, desinquietar Marília. Esgares, dichotes alarves, gestualidades torpes, meneios fesceninos. Luís voltara-se de repente, empurrara um deles e avançara para o outro, de cabeça bem levantada:

– Que é que foi? Tens dentes a mais, tens? Queres fornecer? Queres?

Talvez a editora pense que um escritor assim não precisa de editor nem mesmo de revisor, uma vez que, na ficha técnica, não consta referência a nenhum destes profissionais. É pena, porque enquanto autores menos experientes precisam deles, autores extraordinários como Mário de Carvalho merecem-nos.

Dou apenas alguns exemplos de como um revisor fez falta a este livro.

– Na pág. 33, há um erro de contas: «Restavam quatro. Meio por meio. Duas em subtérreo lazer duradouro, outra esquecida em sumidouros ignotos do mundo, a terceira professando na Arménia». Onde está «terceira» deveria estar «quarta».

– Na pág. 40, há um pronome errado: «O meu olhar deambulou pela estante […] e susteve-se, melancólico, ao encontrar Servidão Humana de Somerset Maugham; aquele livro era dele: o vinco na encadernação, causado pelo corta-papéis do meu pai, o «M» de Maugham muito sumido, quase poderia garantir que o feitio do meus dedos, as marcas da minha transpiração estavam lá». Mais informações no contexto confirmam que aquele «dele» deveria ter sido substituído por «meu».

– Nas págs. 45 e 46, conviria optar por uma das formas «raquete» ou «raqueta», evitando a inconsistência. A segunda forma, mais adaptada à nossa língua, teria sido preferível.

– Na pág. 46, há uma frase equívoca: «Há coisas que não podes saber, Luís Jorge, meu querido, meu velho, que eu hei-de levar para a cova, mas tu não.» Para evitar a leitura segundo a qual seria Luís Jorge o levado para a cova, talvez fosse bom repetir a palavra «coisas»: «Há coisas que não podes saber, Luís Jorge, meu querido, meu velho, coisas que eu hei-de levar para a cova, mas tu não».

– Na pág. 64, uma personagem diz «Olha a maninha. Só agora?». Tratando-se da chegada de uma personagem feminina junto do pai e do irmão, o leitor é levado a pensar que quem fala é o irmão. Mas não: é o pai. Talvez fosse melhor: «Olha a tua maninha. Só agora?»

– Na pág. 96, («Mas ela voltou atrás e chamou a minha mulher aparte») o substantivo «aparte» deveria ter sido substituído pela locução adverbial «à parte».

Em fase mais incipiente de construção do livro, um editor poderia também ter ajudado, com pelo menos duas recomendações ao escritor. Uma relativa ao título. Porque a burguesia, neste conjunto de contos, não é mais do que «cenário», e o que mais importará neles aos leitores de Mário de Carvalho não são circunstâncias sociais, que de resto não se questionam. Com poucas exceções, é a miséria do envelhecimento que neste livro se estenderá quase sempre ao leitor: na dupla vertente da falência do corpo e da falência das relações. Que o autor opta por mostrar em todo o seu ridículo (gesto literário diferente da ironia). É pena que o título não assuma esta realidade, assim como a seleção dos contos; até a sequência poderia atentar mais nela.

A segunda recomendação que um editor poderia ter feito a Mário de Carvalho é que não subalternizasse tanto a construção das personagens à ação. Na verdade, as personagens do escritor apresentam-se um tanto «binárias», como aliás o comportamento que assumem. O universo humano resultante tende para o estreito, e o facto de ser amargo não o torna mais valioso do que se fosse delicodoce. Mário de Carvalho sabe fazer melhor, e um editor poderia ter-lhe pedido que não desistisse do que sabe nem do que pode.

Deixo uma nota final ao design do corpo do texto deste livro e da coleção de que faz parte. O recurso a um tipo de letra sem serifa para os títulos dos contos, em oposição a um tipo de letra mais clássico para a mancha gráfica era escusado. Assim como o desalinhamento do número de página em relação à mancha. Mas saúda-se a qualidade dos papéis (capa e miolo) e a generosidade dos espaços que tanto favorecem o conforto da leitura.

Ângela Correia

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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