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Existência ininterrupta

Luz da vida. A amiga do Algarve tinha chegado recentemente a Lisboa para as férias de verão. Enquanto os dois jovens bebiam despreocupadamente um chocolate frio, cada um dos seus gestos deixava para trás uma alegria contagiante. Tinham escolhido alguns livros para ler e considerar durante as horas de maior calor, em que era impossível estar lá fora, no jardim. O gosto de viver a novidade das férias em conjunto compunha todos os pensamentos, todos os sorrisos.

— Sinto-me tão contente por passarmos este verão juntos — disse-lhe eu.

— Sim, também eu — disse ela numa voz entrecortada.

Tinha um rosto amplo, com o nariz pouco saliente e qualquer coisa de inocente nos lábios. De pele alaranjada e olhos brilhantes, apresentava um aspeto encantador. Engoli em seco. Por segundos, eu e ela fixámos o olhar. Toquei-lhe. Fiz-lhe uma festa, um minúsculo e íntimo gesto de afeto. Ela sorriu e corou. Pensei para mim mesmo: existe tanta beleza no mundo. Às vezes, parece-me vê-la toda ao mesmo tempo e não consigo sentir senão gratidão.

Estava deitado na cama, sem sono. Eram talvez seis da madrugada, quando, magnificamente, fui acariciado pelas recordações daquele verão extraordinário, 15 anos antes. Olhei para ela. Dormia pacificamente. Deixei-me invadir pela frescura, imaginação e liberdade das formas dela. Toquei-lhe no cabelo. Fiz-lhe uma ternura. Ela alteou as pestanas e sorriu.

— Amo-te — disse-lhe eu. Segurei-lhe a mão e beijei-lhe os lábios com vivacidade. Os meus joelhos tremeram. As mãos desencaminharam-se por entre os lençóis.

Lá fora, com a primeira claridade do dia, as gaivotas voavam felizes, assim como nós, à chegada de um novo dia naquela vila algarvia.

Existência intermitente

Luz da vida. Se o meu amor fosse vivo, celebraríamos no final do mês um novo aniversário de casamento. Fogos de cores nunca antes vistas propagavam-se e uniam os nossos impulsos harmoniosos. Um futuro ilimitado era o que tínhamos pela frente. Amor, na forma nobre e doce, visão sedutora e adorável. Porém, sem piedade, o brilho desaparecera. A chama cor-de-rosa da vida sumira-se, ascendera ao paraíso, sem viagem de regresso. Adeus poesia.

Escuridão. Só quero sair e fazer qualquer coisa, percebes? Fui virado do avesso, lançado a um terrível novo mundo. Condenado a viver. Ando por aí durante a noite. Das seis da tarde às seis da manhã, às vezes até às oito. Sete dias por semana. De comboio, de autocarro. Passam-me diante dos olhos todos os tipos de rostos. Figuras incógnitas. Tanto tempo perdido a esmagar o chão e, quando chego a casa, ainda não consigo dormir. Raios! Só quero que escureça novamente. Quero mesmo. Ando com más ideias. As dores de cabeça pioraram. Sinto o corpo estragado. Abusado pelo tempo. Atropelado por comprimidos e álcool. Os músculos sempre tensos. Os olhos vermelhos e cavados de febre.

Estava decidido. Juntei os pequenos bocados de mim e abalei. Conduzi a noite toda, estava já na reserva de gasolina. Parei para abastecer e comprar cigarros. Entrei e vi aquilo. Ali estava. Um gajo a roubar o posto de abastecimento. Fiquei parado na porta de entrada até que resolvi avançar e ser visto. Pensava: e se estou enganado? Então, o indivíduo olhou para mim. BUMMM! Ouvi o disparo.

Luz da morte. Estava certo. Finalmente, a felicidade de morrer. A morte é o aceno inevitável e humano que tudo apaga, que sorri e acolhe a revolta. A derradeira viagem. Aqui vou eu, de olhos bem abertos, para estar novamente a sós contigo, num face a face luminoso e dourado. Guio-me pelo teu sorriso divino. Desejo-te. Amo-te.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

Comments(2)

    • José Marcos Serra

    • há 4 anos

    Nota 100!
    Excelente.
    (mas ainda é muito novo para estas conclusões)

    • Hélio Sequeira

    • há 4 anos

    Muito obrigado pelo seu comentário.

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