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Foi a subir a Rua do Loreto que reencontrei o Cinema Ideal.

Parei à porta, enquanto terminava de roer uma maçã. O interior estava escuro, e parecia não haver ninguém dentro. Procurei a informação dos horários, e tentei perceber que filmes tinham em cartaz. Foi um empurrão menos delicado no ombro que me trouxe de volta ao espaço real. Desimpedi a passagem estreita, contornei os turistas e pus-me fora dali. Com a sensação de que me tinha esquecido de qualquer coisa em tempos querida.

É que o Cinema Ideal talvez tenha sido o lugar que inaugurou os meus tempos de licenciatura. A primeira vez que atravessei a ponte de comboio, sozinha, determinada a fazer de Lisboa a minha nova casa, foi com destino ao Cinema Ideal, para assistir a uma sessão de Os Verdes Anos. 

Tinha 18 anos e vontade de mudar o mundo. Na altura andava com um grupo curioso, na sua heterogeneidade, de colegas da Faculdade. Tínhamos em comum o veganismo, a aversão à praxe, e o levarmos a peito as alterações climáticas. O que começou com encontros rápidos de corredor, transformou-se em reuniões organizadas pelos cantos da Faculdade de Letras. Arquitetávamos eventos, com direito a panfleto informativo afixado na parede. Mostras de documentários, workshops sobre ZeroWaste, a preparação dos cartazes para manifs eram o tipo de coisa de que nos ocupávamos depois de um dia de aulas. Encontrávamo-nos religiosamente às quartas-feiras à tarde, na horta comunitária da FCUL. Os rapazes responsáveis mandavam-nos arrancar daninhas, preparar camas e plantar pés de morangueiro ou tomateiros; em troca, jantávamos uma sopa feita com os produtos da horta.

A maior parte de nós vinha de fora da capital. Apoiados uns nos outros, fomo-nos afeiçoando a Lisboa, tornando-a cada vez mais nossa. E estando juntos, era mais fácil galgar com confiança as escadas íngremes e os corredores escuros dos prédios antigos onde havia as aulas sobre a Bhagavad-Gita ou as sessões de Slam Poetry. Voltávamos para casa, ora com cheiro a incenso, ora com cheiro a tabaco.

Houve dias de chuva, houve dias de frio, mas não consigo lembrar-me de nenhum deles. Abro esse capítulo da minha vida e vejo uma protagonista naive, refilona, mas sobretudo otimista. As recordações desse tempo e dessas pessoas podem ser reduzidas à imagem de um grupo de quase-adultos sentados nos degraus sujos do miradouro de Santa Catarina, no final de tarde de um dia de semana. Recordo-os como se numa redoma, de guitarras na mão, hulla hoops na cintura, a discutir Foucault, cinema português e permacultura. Os nossos verdes anos.

Carolina Andrade

Os Invulgares

Comments(4)

    • José Serra

    • há 2 anos

    Não deixe fenecer os anos; nem os sonhos: esses ou outros; revitalizados ou novos.
    É bom sonhar e recordar. A leitura levou-me.

      • Carolina Andrade

      • há 2 anos

      José, obrigada pelo comentário. Gosto em tê-lo como leitor.

    • Joao Pires

    • há 2 anos

    Excelentes palavras para descrever experiências e recordações.
    Obrigado pela partilha.

    João Pires
    Autor no luso.eu

      • Carolina Andrade

      • há 2 anos

      Muito obrigada, João.

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