Ali há um espelho. Eu fui deitar-me defronte.
– Pode vir também… se quiser… Isto de nos vermos ao espelho é muito importante!
O espelho era tão cinzento. A sala estava tão escura. Eu acendi a lanterna do telemóvel e deitei-o no chão. O rosto ficou tão nítido no espelho. Eu pude contemplar o meu rosto.
– Vá, sente-se aqui comigo. Quero mostrar-lhe uma coisa…
– …………….?
– Pois, ainda bem que pergunta o que é. Eu sei que já viu isto muitas vezes, mas… na verdade, eu hoje não tenho nenhum objetivo. Eu acho que não tenho nada para lhe dizer. Queria mostrá-lo a si próprio. Mostrar o seu rosto ao seu rosto. Mostrar a sua imagem ficcionada à sua imagem real. Não serei, certamente, bem-sucedido, mas também…
– ……………….?
– Eu sei que, se não soubesse que aquela imagem era minha, não teria de procurar a felicidade noutra pessoa… mas assim até parece injusto.
NBC. Sir Scratch. …não sei se «os espelhos se partem sempre». Aquele espelho que me reflete é constante. Eu sei que este é o grande mal da técnica. Heidegger também o sabe. Eu ponho-me diante do espelho e pergunto: quem sou? O espelho devolve a minha imagem, que já não é a minha imagem. O espelho devolve-me a mim mesmo, mas numa imagem. Eu queria aceder ao íntimo de mim. À minha essência. Querido espelho. Fizeste tanto por mim. Se não fosses tu, eu nem saberia a cor do meu cabelo. Teria de cortar alguns fios para o saber. Teria de arrancar um olho para lhe saber a cor, e um pouco de pele da cara para comprovar a semelhança desta cor com a cor dos meus braços. Ou confiar na verdade de outra pessoa, o que ainda assim é mais terrível. A cabeça não foi feita para ser conhecida, mas para conhecer. Tudo isto é tão estranho e inútil. O espelho não mostra os meus pensamentos. Wittgenstein diz que o sujeito físico é uma ilusão. O espelho o comprova. Não há nada para ver, além do meu rosto horrendo, senão perpetuar o estar vendo o meu rosto, que me mantém aqui.
Luís Ramos