Mais distúrbios na cidade de Lisboa. Uma centena de jovens cercou a esquadra do largo da Penha. Os confrontos deixaram vários agentes feridos, e 30 pessoas foram presas. Um centro comercial e vários edifícios públicos foram vandalizados, antes de a situação se normalizar às 6 da manhã.
A rebelião foi espoletada por brutalidade policial. Quatro dias antes, um adolescente fora severamente espancado durante um interrogatório. O agente tinha sido temporariamente suspenso, mas o jovem continuava internado no hospital, sendo o seu estado considerado grave pelos médicos.
– Sabias que, naquela noite, um polícia perdeu a pistola?
– Sim.
– Quero mostrar-te uma coisa. Olha lá!
– O quê! Foste tu que a encontraste! Que vais fazer com ela?
– Está quieto. Tem calma.
– Então? Que vais fazer com ela? Tens de vingar o teu irmão.
O apartamento onde morávamos situava-se num prédio envelhecido, num bairro social da periferia de Lisboa. A casa era minúscula, mobilada de forma prática. O meu irmão saiu do hospital com um grau de incapacidade de 97 %. Estava escrito. A nossa mãe andava na briga diária para sustentar a casa, e eu cuidava diariamente dele o melhor que podia. A cama articulada ocupava o centro da sala. À cabeceira, encontravam-se medicamentos, um aspirador bocal de fluidos e um conjunto de seis seringas esterilizadas de 100 ml para lhe administrar as refeições. Próximo da janela, estava um canário cor de salmão, que periodicamente lançava doces melodias, inundando o cubículo de esperança.
– Oh, Diabo! Oh, Diabo! – gritei, levantando-me repentinamente. Pus-me a andar pela cozinha, com o sangue na face, tropeçando nas cadeiras, a pensar com raiva no que nos calhara. Fui buscá-la. Agarrei na pistola e senti o ferro frio. Era o meu ritual. O sangue acelerava ainda mais ao sair dos dois buracos do coração.
– Não quero matar – matutei – Só quero fugir. Tenho de tirar esta arma daqui! –Atirei a arma contra o vidro da janela. O vidro partiu-se, mas a arma caiu para dentro de casa.
A janela ficou iluminada. Fui encostar-me à ombreira, com a fralda da camisa de fora, a fumar um cigarro e a apanhar ar. Espalhou-se pela casa uma mágoa hipnotizante, que nem as melodias do canário cor de salmão conseguiram disfarçar.
Hélio Sequeira
José M. Serra
Ódio?!
Hélio Sequeira
Ou medo.
José M Serra
No princípio era o ódio.
Depois veio o medo.
O texto deu-me a esperança (utópica?) de um terceiro estado que conduziria a uma via alternativa, em qualquer caso, melhor.
Uma das virtudes do texto é que me induziu a lucubrações de esperança num mundo melhor.
Mas, na dúvida, o autor é que sabe.