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Hoje em dia, ao passar o rio, de comboio pela ponte, deixo que o olhar fique sobre os silos da Trafaria: visão desbotada e fantasmagórica. Os silos parecem velhos monstros melancólicos que o tempo esqueceu. Talvez este pormenor reflita a minha relação atual com a capital, porque as travessias transtejo nem sempre tiveram este tom. Há uns anos, era com o nariz colado ao vidro que, mal o comboio passava sobre Alcântara, escrutinava ferozmente as janelas abertas da cidade. Em plano picado, naqueles minutos rápidos e passageiros, via salinhas de estar acolhedoras, os interiores vaporosos das casas de banho, terraços mobilados e inúmeras marquises atulhadas de tralha. Era este o exercício matinal: espreitar entre frechas.

Ganhei este hábito indiscreto nas noites de tédio, passadas na casa da avó, durante a pré-adolescência. Ficávamos sentadas durante o longo serão, numa salinha escura, iluminadas por um fraco abajur cujo perímetro luminoso só abarcava a poltrona, o sofá e o televisor, deixando o resto dos objetos da salinha imersos nas sombras. O televisor era o elemento insólito no ambiente modesto da salinha, abundante em bibelots, jarras com flores artificiais e estatuetas de São Miguel, Santa Filomena e companhia. Estava com a mãe no dia em que chegámos ao apartamento, e encontrámos um homem acocorado, outro de gatinhas, a montarem a TV, que, nas palavras da minha mãe, parecia um ecrã de cinema. Agora que relembro o episódio, a compra do televisor foi uma das únicas decisões autónomas que a avó tomou, após a viuvez. Sem consultar as filhas sobre preços sensatos, nem seguir os conselhos dos genros sobre o modelo adequado. Quando lhe perguntaram, numa véspera de Natal em que todos já estavam bem bebidos, o valor da televisão, a avó bebericou o champanhe antes de responder, e disse bem-disposta: «Um balúrdio, mas eles ofereceram um ótimo plano de prestações».

Conforme a audição da avó ia piorando, o sofá e a poltrona aproximavam-se da televisão. Aumentar o volume incomodaria os vizinhos, até os que estavam mortos ou de férias. Víamos em modo zapping imensos programas, porque a avó não tinha por hábito deter-se muito tempo num só. De comando na mão, mostrava-me os programas de que gostava e os que, nas palavras dela, não tinham gracinha nenhuma. Parávamos minutos longos num talk-show ou numa novela, para que a avó me explicasse por que motivos determinada apresentadora ou atriz era uma ensimesmada vaidosa, sem classe para fazer televisão. Concordava quase sempre com o julgamento dela, apesar de lhe responder que má-linguarice era coisa feia. Ela sacudia os ombros e respondia «Eles não nos ouvem», enquanto esticava o braço para mudar o canal.

Pelas 11 horas, a avó adormecia no sofá, altura em que eu tomava posse do comando para emudecer o aparelho. Acabava invariavelmente voltada para a contemplação da rua, escondida entre a translucidez dos cortinados. Apesar de ser movimentada durante o dia, àquela hora, passava pouca gente. Pontualmente, surgia um grupo de jovens barulhentos, ou alguém saía na paragem de autocarro, mas desapareciam apressadamente do cenário. Aprendi, ao observar as janelas do prédio da frente, que as pessoas são animais de hábitos. O rapaz do terceiro esquerdo passava noites sentado no chão do quarto com uma guitarra elétrica no colo, desferindo acordes tímidos, afinando cordas. Outro vizinho, no andar de acima, cinquentão e obeso, costumava abrir a janela sem acender as luzes para fumar um cigarro. Talvez fossem os gestos lentos, ou as sombras que os candeeiros de rua lhe projetavam no rosto, mas algo fazia dele uma visão triste. Havia janelas sempre tristes. Certa vez, vi o casal jovem que morava no terceiro andar. Estavam na cozinha: ele encostado à bancada; ela, de costas para ele e com as mãos na cabeça, parecia soluçar. Ficaram assim muito tempo, sem darem sinais de conversar, até ele sair da cozinha. Levantei-me da poltrona, deixei a avó a dormir no sofá. Deitei-me na cama com uma dor no peito. Sujeitamo-nos a estas coisas, quando espreitamos pelo buraco da fechadura.  

Carolina Andrade

Os Invulgares

Comments(7)

    • Joao Pires

    • há 3 anos

    Vários detalhes. O movimento, a viagem, a companhia da avo e o voyeurismo ou o acto de espreitar pelo buraco da fechadura. As emoções transmitidas pelas janelas. muito bom.

    • Manuel Sá

    • há 3 anos

    Gostei muito, e isso, para mim, é importante: tenho de dizê-lo, a quem assim me faz gostar de o dizer.

      • Carolina Andrade

      • há 3 anos

      É sempre gratificante receber feedback sincero, fico agradecida.

    • José Serra

    • há 3 anos

    Sempre que começo a ler texto que não seja livro ou revista sólida, faço-o sempre sob a intenção de interromper, logo que deixe de agradar-me.
    Li até ao fim, e deixou-me a pensar sobre a razão daquela dor e daquele abandono.
    Bem haja.

      • Carolina Andrade

      • há 3 anos

      Caro José,
      É um gosto tê-lo como leitor. Um bem haja.

    • Cristiane de Oliveira

    • há 3 anos

    Carolina:
    Maravilhoso o seu texto! Quantos ensinamentos de avó, úteis também em tempos de quarentena. E que cada um saiba bem o que quer fazer de suas janelas e com o que se espreita.
    Um abraço,
    Cristiane

      • Carolina Andrade

      • há 3 anos

      Muito obrigada, Cristiane. Fico contente com o seu comentário caloroso. Um abraço!

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