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Eu tinha-me mudado para o Algarve, onde, quando a Musa o permitia, passava os dias a escrever. A aldeia em que me estabeleci era um pequeno povoado rural. Constituído apenas por um punhado de casas, uma pequena igreja, uma barbearia e uma «venda», como as pessoas da terra lhe chamavam, ou seja, um negócio composto de mercearia e taberna. Quando não conseguia aquietar-me, e a realidade insistia em confundir-me, era à «venda» que me dirigia para beber uma ou duas cervejas e talvez um «dedal» de medronho. A taberna tinha um grupo de regulares fiéis, homens locais que trabalhavam no campo, bem como pescadores que lavravam o mar. Eu adorava ouvir as histórias que contavam, e as descrições dos velhos tempos. Imagens misteriosas vinham até mim enquanto os ouvia.

Era 1 de novembro; encontrava-me na taberna a beber uma cerveja média. Estava a pensar no que já tinha escrito e no que imaginava escrever no dia seguinte. Passado algum tempo, reparei que um dos clientes da taberna se encontrava a acenar-me, ou a «dar de vaia», como se diz por ali. Era o Manuel Silva, conhecido por «Tangerino». O nome tem naturalmente origem na palavra Tânger, o que traduzia na perfeição os traços fisionómicos do Tangerino. Já o tinha visto dezenas de vezes ao longo do tempo, mas nunca tínhamos falado. Tínhamos um daqueles pactos de silêncio, baseado no respeito mútuo, em que optávamos por não interagir. Fiquei surpreendido quando ele se aproximou e começou a falar comigo. De forma bastante natural, após uma apresentação educada, o Tangerino aventurou-se numa longa exposição que cobriu grande parte da história da vida dele. Fomos bebendo algumas cervejas, enquanto ele me falava, com brilho nos olhos, do orgulho que tinha em ser pescador, do amor e respeito que tinha pelo mar, do seu barco de pesca, o Todos-os-Santos. Disse-me, ainda, que a filha, «a minha pequenita», estava para as bandas de Lisboa, a sonhar com um futuro melhor, e que a mulher, «a rainha do meu coração», tinha partido sete anos antes, vítima do «maldito cancro». Fiquei surpreendido com a autenticidade daquele homem; foi com gosto que fiquei a conhecer o Manuel Silva. Estivemos a conversar e a beber não sei quanto tempo, até ele olhar para o relógio de parede da taberna e dizer-me que tinha de ir para casa. Estendeu-me a mão e demos um aperto de mão entusiasmado. Disse-me como fora ótimo falar comigo e que tínhamos de o fazer mais vezes. Eu concordei.

No dia seguinte, como a escrita não fluía, fui caminhar até à praia e, no regresso, passei pela «venda». Assim que entrei, deram-me logo de rompante a trágica notícia. O Tangerino tinha tido um acidente no regresso a casa. A motorizada Famel Zundapp tinha largado o pavimento e avançado por um barranco. Tinha morrido instantaneamente. Fiquei abalado. Deduzi que teria sido a última pessoa com quem ele tinha falado. Nunca tínhamos falado antes, e ele tinha-me contado o seu percurso de vida e lembranças, de forma tão própria, como se soubesse que o fecho da vida se aproximava. Fiquei em silêncio, imaginando o Tangerino no barco Todos-os-Santos a navegar sobre a linha ténue entre a Terra e o Além.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

Comments(6)

    • Manuel João Sá

    • há 3 anos

    Gostei muito. Um pequeno conto, ou uma crónica da vida, que tem tudo: de forma simples, uma linguagem cristalina, um retrato de breve de vivências, que acontece por acaso, um fim trágico, a rematar o que poderia ser uma história para continuar. Agradeço.

      • Joao Pires

      • há 3 anos

      muito bom. escrita fluida e premonitória de tragedia. parabens.

    • Hélio Sequeira

    • há 3 anos

    Obrigado pelo seu comentário.

    • José M Serra

    • há 3 anos

    Tão nítido, tão fluente, que acredito!

    • Hélio Sequeira

    • há 3 anos

    Obrigado pelos comentários.

    • Jose Manuel Leão

    • há 3 anos

    Muito bom !

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