Ela tem um sonho recorrente, que já nem sabe bem se será mesmo um sonho. Fica tudo emaranhado e confuso na cabeça dela, como os fios dos earphones atirados ao acaso para dentro da mala. Está num muro alto, ventoso e, de início, agradável, dada a vista deslumbrante de campos infinitamente verdejantes. Sente como se estivesse no topo do mundo, até que começa a caminhar. O muro transforma-se em muralha. Do lado direito, merlões e ameias, blocos sólidos de pedregulhos trabalhados; do lado esquerdo, um vazio inseguro que até arrepia os pelinhos mais curtos dos braços. Veem-se casas e jardins, cultivados e floridos, lá em baixo; mas a distância alonga-se a olhos vistos, como só a mente sabe hiperbolizar. Começam a aparecer pessoas contracorrente que a obrigam a escolher o caminho mais próximo da beirada, o que espicaça o estômago compactado a formar um novelo medroso. Nunca teve medo das alturas, mas sente um medo irracional de cair e o equilíbrio parece desmoronar-se, assim que o cérebro assimila a possibilidade aterradora. Quando devia valer-lhe é que se liquefaz em impotência. E algumas pessoas encostam-se ao lado direito para a deixar passar, enquanto outras continuam indiferentes, embatendo contra o ombro dela, criando mais instabilidade. A barriga contraída revolta-se, apetece-lhe vomitar.
Acorda, prestes a cair outra vez, com a boca escancarada de horror e de necessidade instintiva de respirar com mais afinco. Respira fundo várias vezes, limpa o suor da testa e do pescoço à manga do pijama coçado do Monstro das Bolachas. São cinco da manhã e ela já sabe que não vale a pena tentar voltar a adormecer. Vai à casa de banho e lava a cara, apreciando a frescura que imagina fazer evaporar a vermelhidão quente das faces. E é dito e feito! Vai para a cozinha e prepara uma tigela com cereais, frutos secos, morangos e iogurte grego. Ao menos que isto lhe valha: um pequeno-almoço digno de Instagram, pronto a mostrar num feed que reflete a faceta brilhante e primorosa da sua vida imperfeita. Já é a quinta vez que tem este sonho e sempre se recusara a pensar nele. Como se precisasse de ainda menos horas de sono!… As olheiras já lhe pendiam das órbitas, quais sacos inchados e enegrecidos pelos sonhos lúgubres transmutados em pesadelos. Andava estafada e dorida, como se tivesse levado uma sova da vida. Mas, desta vez, pôs-se a pensar no assunto. A certa altura, percebeu a familiaridade, a espreitar cá para fora de um recanto do subconsciente. Reconheceu as semelhanças e sentiu-se uma parva por não ter percebido logo. Que coisa!
Já visitara Óbidos havia alguns anos. Andava a passear pelas muralhas, quando lhe chegou a sensação de desequilíbrio e desamparo que a margem desprotegida lhe incutia. Só lhe apetecia afincar os pés do lado direito e já não sair de lá, qual criança birrenta. A altura não era assim tão grande, mas o cérebro atuava à luz da nova crença: morreria se caísse. Impôs-se então a necessidade de criar uma distância de segurança. E quando esta não era possível, o medo paralisava-a, deixava-a nauseada com uma possibilidade de morte inventada na mente melindrosa.
As recordações queimaram-lhe os sentidos como água derramada de um bule ao lume, o que a fez retirar imediatamente a mente escaldada da memória desagradável. Pensava que tinha sido um excelente passeio, mas o subconsciente conseguira morbidamente cavar e desenterrar o túmulo daquilo que já sentira, mesmo sem saber, em tantos momentos da vida.
Precisamente naquele dia, acabada de chegar ao trabalho, perguntaram se queria passar três meses em Itália, para ajudar na instalação da nova sede. Ela recusou prontamente. Por nada deste mundo! Queria lá mudar de vida! E o cérebro apenas assentiu e assimilou.
Ana Rita Sintra
Nuno Renato Marques
És uma verdadeira central nuclear a funcionar à velocidade da luz. O que escreves é experimental utilizando o ruído como forma de te exprimires. A dissonância é uma regra que segues e não segues mas que revela uma fonte de energia em que estás à escuta de forma brilhante. Cortas a respiração a anti-asmáticos, deixando-os a bater mal.