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Minha Mãe

Acho que começo a compreender o que alguém escreveu um dia: «Os homens não falam a mesma língua na guerra e na paz.» Este lugar é tão diferente do nosso. Apenas a terra tem a mesma cor. Vermelha de cheiro forte. Tudo o resto é diferente. Cada vez me custa mais a aguentar isto e só passou um mês. Um mês pavoroso. Progredimos pelo terreno fora todos os dias. Já não faço ideia do que ando a fazer. O inimigo podia estar mesmo à minha frente que eu não notaria. Estou cansadíssimo. Levantamo-nos às 4 da madrugada, caminhamos o dia todo até acamparmos, cavamos um buraco, comemos uma ração e depois passamos a noite de vigia. É assustador. Dizem que, se é para morrer nesta maldita guerra, então é melhor morrer logo no primeiro mês, para não se sofrer tanto. Talvez se durma três ou quatro horas por noite, mas, na realidade, não se dorme. Não acredito que aguente isto durante um ano. Ter vindo talvez tenha sido um erro. Mas fui sempre tão protegido e privilegiado. Só quero ser anónimo como toda a gente e fazer a minha parte pelo nosso país. Estar à altura do que o avô fez na Primeira Grande Guerra. Aqui estou eu, anónimo, com companheiros a quem ninguém liga nenhuma. Vindos de terrinhas do interior. São Marcos da Serra, no Algarve. Santa Clara de Louredo, no Alentejo. São Cosme e São Damião, no Minho. Sem estudos. Com sorte, têm à espera deles um trabalho no campo ou então são obrigados a emigrar. A maioria não tem nada. São pobres. São os desfavorecidos. Lutam por todos nós, pela Nação. É estranho, não é? São estes os homens que aguentam com isto tudo. São o melhor que alguma vez vi, mãe. A alma e o coração de Portugal. Talvez possa recomeçar a partir daqui. Ser alguém de quem me possa orgulhar. Sem ter de enganar-me. Ser um homem a sério. Sinto a tua falta. Falta-me energia para resistir. Já não sei o que está certo e o que está errado. Conto os dias e pouco mais do que isso. Espero que esteja tudo bem, mãe. Diz ao pai que estou a aguentar-me. Que temos combatido com valentia. Embora, na realidade, o combate seja com nós próprios. O inimigo está em nós. A guerra nunca vai acabar para mim. Vai cá ficar para sempre. Até ao resto dos meus dias. Estou certo disso. Se me safar e voltar, vou ensinar aos outros aquilo que sei e tentar encontrar um sentido para esta curta vida. Pode ser que escutem.

Saudades,

O teu filho

Hélio Sequeira

Os Invulgares

Comments(4)

    • Manuel Sa

    • há 4 anos

    A guerra. As guerras. O que é usado como solução, quando as boas hipóteses de solução já foram ignoradas, propositadamente ou não, deitadas para o lixo, pelos poderes dos poderes, que submetem quem não tem poder. Sempre assim, desde o princípio da Humanidade, seja lá isso o que for. Enquanto ainda não se descobriu uma forma de ganhar poder, capacidade de intervenção organizada, eficiente e eficaz, por parte de quem não tem poder. Ou seja, a capacidade de dizer NÃO, e concretizá-lo, por parte de uma CIDADANIA ACTIVA, QUE IMPEÇA E SEPULTE AS TENTATIVAS DE GUERRA(s). Utopia. Sim, mas se não se caminhar nesse sentido, a ideia de Guerra vence sempre, ainda que depois só haja vencidos e, muitas vezes, é assim e, quando há vencedores, muitas vezes são os do lado mais negro da História da Vida.
    Gostei muito do texto, que agradeço. Fala alguém que andou numa guerra, para a qual foi mandado, contra o seu pensamento, a sua “natureza”. E sei / soube que foi a coisa mais difícil da minha vida. Por isso mesmo, não pela guerra em si. Por isso mesmo: ser contra o meu pensamento, a minha natureza.

      • Hélio Sequeira

      • há 4 anos

      O Ser Humano. A Guerra.
      Desde o princípio da Humanidade. Até ao fim da Humanidade.
      Agradeço muito o seu comentário.

    • José Marcos Serra

    • há 4 anos

    Acabei de ler, hoje mesmo, as Memórias da Grande Guerra, de Jaime Cortesão.
    Grandioso e profundo.
    Agora esta Infinita guerra.
    Que belo Epílogo!

      • Hélio Sequeira

      • há 4 anos

      Obrigado pelo seu comentário.

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