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I

Diálogo entre um pássaro e uma flor 

– Tens mesmo de ir?

– É

– Tem mesmo de ser? Podias ficar… sei lá… eu podia ajudar…

– É inevitável.

– Inevitável?!

– É assim. É a vida…

– Para com isso! A tua vida é o que tu quiseres que ela seja. Para com isso! Deixa de ser assim.

– Assim como?

– Assim! O destino não existe! Tu é que fazes o teu destino! E não tens de ir embora…

– Tenho

– Ah!! Que raio! Porquê?

– É o que tem de ser feito

– Que coisa! Já chega! É o que tem de ser ou é o que os teus pais te dizem que tem de ser?

– Não. É o que tem de ser.

– E tu queres mesmo isso? O que é que vais fazer lá?! Onde é que vais trabalhar?! Numa caixa de supermercado?! Vais viver à custa dos paizinhos a vida toda? Aqui tens tanta coisa para fazer!

– A minha alma não aguenta isto. Só preciso da minha paz.

– E aqui não tens paz? Arranjas trabalho aí numa coisa fixe, ganhas o teu, arranjas uma casa e ninguém te chateia!

– A minha alma não pode suportar isto.

– Não sei mais como te hei-de dizer…!

– Eu preciso de encontrar a perfeição.

– Então e…

– Eu preciso de ir. Não consigo suportar isto.

– E vais fazer o quê?

– Hum… não sei bem ainda. Alguma coisa há-de ser…

– Arranjar um emprego…

– Não. Tem de haver outra forma.

– Não há!

– Tem de haver. Tem de ser.

– Tu é que sabes…

– Toma.

– Isso é o quê?

– Guarda.

– Obrigado!

– De nada.

– Adeus!!!!!

– Adeus.

II

Um poema

Não me lembres daquela noite lamacenta,

em que tudo em nós se esvaziava

e a tua ansiedade sedenta

a minha presença espraiava.

Não me lembres – foi ontem – da violência,

que tudo esmorece em pacatez.

a tua ansiedade esgotou-me a paciência.

aquela – como tudo o que merece ser contado – foi a última vez.

Não me lembres da carcaça inumana

em que a minha ausência te tornou.

Dessa ansiedade débil emana

a razão que nos juntou.

Não me lembres… era uma promessa

de tristeza, de desespero, de absoluto?

Se a tua ansiedade não fosse tão expressa

seria o teu corpo mais resoluto?

Não me lembres do que me obrigaste

a fazer quando parámos à beira da insatisfação.

Eu provei da tua ansiedade, mas tu malograste

a minha devoção.

Não me lembres dos pinheiros nem das estradas.

Eu quero esquecer os caminhos de terra batida.

As incertezas da tua ansiedade são povoadas

por enigmáticas figuras ausentes de vida.

Não me lembres do silêncio nem da telepatia.

Não foi isso, sequer, que nos juntou.

Esquece a hipnose e a telecinesia. Se havia

amor entre nós – a tua ansiedade o matou.

III

Um conto

A fina linha. Fim da linha. Limite. Tudo limita. Além nada há. Aqui sequer. Partir? Partir a linha para quebrar. Quebrar a realidade para encontrar a verdade. Sempre a linha. A linha que divide. Que divide e que contém. Exaustiva. Tudo absorve. Linha luminosa estendida sobre uma impossibilidade. Só a linha existe. Só a linha. Estendida sobre uma impossibilidade. Duas pontas. Um caminho. Numa ponta há um macaco. Noutra ponta, uma cobra. O macaco é uma caverna. Uma cobra é um precipício. Sobre a corda estamos nós. Nós quem? Ninguém está sobre a corda. Qual corda? Cada um é uma linha. Toda a linha é uma linha. Sempre a linha. A mesma linha. O macaco ergue a linha e sobe à árvore? Na ponta da linha há uma árvore. O macaco sobe à árvore. A árvore que está na ponta da linha. O macaco é uma gruta. Uma cobra é outra ponta. Um precipício essa ponta. E o macaco aponta à cobra. Essa cobra que rasteja no chão. Mas que chão? Essa ponta. A outra ponta. E nós somos a corda e nós somos a corda. Qual corda? Não há uma linha? Outra linda e linda linha? Segue a linha ou quebra a linha quase impossível de quebrar. Se a linha segue enviesada e ninguém a quebra nada mais há que quebrar. E a linha é o entre-gruta-e-precipício. Nada há além disso. Mas se alguém quebra a linha. A linda linha a meio da descida? Desaparece no ar? Ou a linha quebrada quebrando noutra linha se vai transformar? Qeril veio e era a linha. E saiu do macaco que era a gruta. E a meio da linha quebrou a linha. E da linha quebrada cuja ponta era o macaco que era uma gruta fez uma fonte. E da linha quebrada cuja ponta era a cobra que era um precipício fez quatro sementes. Qeril molhou as sementes na água. A primeira criou uma linha azul. A segunda criou uma linha amarela. A terceira criou uma linha vermelha. A quarta criou uma linha verde. Qeril construiu um quadrado com as quatro linhas e sentou-se no interior.

Luís Ramos

Os Invulgares

Comments(2)

    • Nazaré

    • há 5 anos

    Encantador. Que belo tríptico, Luís. Parabéns!

      • Luís Ramos

      • há 5 anos

      Muito obrigado!

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