Ela era ainda uma menina. Numa terra virgem, sem vestígios anteriores, sem arqueologia. Terá havido árvores antes, mato, bichos. Mas naquela altura era uma rua alcatifada, degraus de pedra e prédios.
Do rapaz, ninguém sabe nada. Mas ele talvez recorde o nevoeiro marítimo e o som dos barcos. Talvez se lembre da tribo da praceta, das mesas de fórmica da «Caverna», do veludo das malvas que insistiam em nascer nas costuras do bairro.
Há locais assim: 2780. Redondos na grafia, sensuais. O código postal era todo de curvas largas, na grafia dos anos 80, em cadernos de duas linhas. Uma enorme avenida fechava, em forma de zero, a urbanização. 2780 morava ao pé do mar. Alinhavos de casas novas, enxovais de casais adultos e viúvas a recomeçar. Mas o rapaz não se lembra de quase nada e ninguém sabe dele. Para os que quiseram esquecer, resta apenas uma geografia sensível, de cheiros e linhas, de insultos e segredos. Um atlas mental.
E, no entanto, Eva nunca foi esquecida. Era de noite, a lua parecia um daqueles candeeiros da avenida, em cimento de gravilha, projetando uma luz de alumínio. O rapaz saíra com os pais, andava ao ritmo dos saltos altos da mãe, pisando pedra sim, pedra não, numa dificuldade pa-ra-le-le-pi-pé-di-ca, o remate do passeio. Uma pausa. No passeio, os pais e a Divorciada cumprimentam-se. Eva afasta-se das saias da mãe. Olha de lado. Há palavras difíceis. Pa-ra-le-le-pí-pe-dos. E, de chofre, com a voz dos pássaros, a Divorciada pergunta «rapaz, e namoradas?!?!».
O rapaz nunca se lembrara de pensar nisso. Na-mo-ra-das. Não era uma palavra difícil. Mas o calor da vergonha encheu-lhe o peito. Olhou o tecido laranja dos sapatos da mãe. Eva não falava, mas sentia-se-lhe o olhar rastejante, de um pecado pequenino, que não devia ser naquela idade. E, perante a imensa dificuldade das palavras e do lancil da calçada, sem arbustos nem abrigo, sem esconderijo possível, fez como se vestisse uma capa e agarrasse uma varinha: «um mágico nunca revela os seus segredos».
Mário Nascimento